sábado, 12 de setembro de 2015

O QUE AINDA FALTA PERDER?

J.J. Camargo* 
 
Aceitamos, sem gritar, as mortes absurdas que todos os dias deixam mães inconsoláveis

O que ainda falta perder depois que a morte foi banalizada?

Haverá evidência maior de desapreço pela vida do que negar aos que perderam seus amados ao menos o elementar direito de enterrar seus mortos?

Tratei da Maria Dolores no início dos anos 80, quando ainda se operavam esporadicamente aqueles casos de tuberculose resistente aos remédios disponíveis. Muitos pacientes foram salvos por uma combinação que incluía quatro ou cinco medicamentos durante quatro meses e, depois disso, a ressecção da área mais grosseiramente doente. Ela curou e sempre me pareceu verdadeira quando me dizia, sem que lhe perguntasse, que a partir de então “na hora de rezar, meu compromisso começa contigo, depois é que vejo quem mais tá na urgência”.

Acho que todo mundo precisa de alguém assim, rezando na retaguarda.

Eu tento consolar a Dolores há anos, depois que o Carlos Eduardo, então com sete anos, desapareceu num bairro miserável da periferia de Porto Alegre. Desde então, ela tem peregrinado no rastro de pistas falsas que regularmente são oferecidas, como requinte da maldade humana, por monstros que parecem se divertir em remetê-la na perseguição aos fantasmas que rondam seus sonhos nas noites inquietas de mãe inconsolável. O que estimula esta escória cruel? A certeza de que ela vai atrás de qualquer pista, por mais ridícula e improvável, e isso parece diverti-los. Mas não há como demovê-la, até porque a racionalização se esvai quando ela contra-argumenta: e se desta vez for verdade?

Certo dia, ela cuidava da fruteira na esquina e, só quando lhe perguntei como estavam as coisas, foi que percebi que ela chorava. Abandonei o comodismo de comprar pela janela e estacionei. Sentados em caixotes, ela me mostrou a foto do menininho sírio, encontrado morto numa praia mediterrânea, depois do naufrágio de um barco de refugiados, que estampava a capa da ZH.

“Tava lendo esta história, e como dessa dor eu sou entendida, fiquei imaginando o desespero dessa mãe procurando o filho desaparecido, e até pedi a Deus que ela tivesse se afogado também, para escapar da dor que eu já passei. Depois, como ando muito desesperançada, fiquei imaginando que aquele menininho sem nome bem que podia ser o Carlos Eduardo, e eu ia pedir àquele soldado que me entregasse para que eu pudesse finalmente enterrar minha cria. Só então percebi o absurdo. Aquela criança tem no máximo uns três anos e o Duda já passou dos 14 e deve estar bem grandão. E aí, me deu mais vontade de chorar de pena daquela mãe e de mim, porque aprendi que mãe que perde um filho perde o mesmo filho todos os dias.”

Aquele abraço que não se desfazia e a falta de palavras foram uma espécie de catarse, como se estivéssemos perplexos à margem do Mediterrâneo, sem mais o que fazer do que pedir desculpa pela naturalidade com que aceitamos, sem gritar, as mortes absurdas que todos os dias deixam mães inconsoláveis, e seguimos a nossa vida como se fosse razoável toda tragédia que não nos atinge diretamente.
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* Médico
Fonte; ZH online, 12/09/2015

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