"Esta encíclica aponta para uma nova civilização". Entrevista com Edgar Morin
Nascido em 1921, o francês Edgar Morin
elaborou, sobretudo em torno da noção de 'complexidade' e todos os seus
corolários também ecológicos, uma reflexão filosófica e sociológica
transdisciplinar considerada por muitos como entre as mais fecundas das
últimas décadas.
Os seus numerosos ensaios, como os seis volumes da obra O Método, foram traduzidos para mais de trinta línguas. Nesta entrevista ele reflete sobre a importância epocal da Laudato Si'.
A entrevista é de Antoine Peillon e Isabelle De Gaulmyn, publicada por La Croix e reproduzida por Avvenire, 10-09-2015. A tradução é de IHU On-Line.
Eis a entrevista.
O senhor não não hesitou em definir como providencial a encíclica Laudato Si'. O que entende por isso?
Numa era do pensamento fragmentado onde
os assim denominados partidos ambientalistas não compreendem a amplidão e
a complexidade do problema, perdendo de vista a pertinência daquilo que
o Papa Francisco chama "a casa comum", uma expressão já empregada por Gorbachov.
Sempre fui movido por esta mesma
exigência de um olhar complexo, global, ou seja, da necessidade de
tratar as relações entre as diferentes partes. No 'deserto' atual,
portanto, aparece este texto que me parece bem pensado e que responde à
esta ccomplexidade.
Francisco define "a ecologia integral",
que não é, de fato, aquela ecologia 'profunda' que pretende nos
converter ao culto da Terra, subordinando todo o resto. Ele mostra que a
ecologia diz respeito às nossas vidas em profundidade, à nossa
civilização, aos nossos modos de agir, às nossas reflexões.
Mais profundamente, critica um paradigma
"tecno-econômico", este modo de pensar que preside todos os nossos
discursos, tornando-os obrigatoriamente fieis aos postulados técnicos e
econômicos para resolver qualquer problema.
Este texto assinala uma tomada de consciência , um incitamento a repensar a nossa sociedade e o nosso agir. É, portanto, providencial, no sentido que é um texto imprevisto que indica o caminho.
O texto tem uma prospectiva humanística da ecologia?
Sim, já que usando a noção de ecologia integral,
a ecologia convida a tomar em consideração todas as lições desta crise
ecológica. Mas, primeiramente, precisemos a noção de humanismo, que tem
um sentido duplo, como Francisco,
por sua vez, afirma no seu discurso, criticando uma forma de
antropocentrismo. Existe um humanismo antropocentrista, que coloca o
homme como centro do universo, que considera o homem como o único
sujeito do universo.
Enfim, onde o homem toma o lugar de
Deus. Não sou crente, mas penso que este papel divino que o homem se
atribui é absolutamente insensato. E uma vez que assumimos este
princípio antropocentrista, a missão do homem, muito claramente
formulada por Descartes, é de conquistar e dominar a natureza. O mundo da natureza tornou-se um mundo de objetos.
O verdadeiro humanismo consiste, ao contrário, em reconhecer em cada ser vivente um ser ser semelhante e diferente de mim.
O senhor compartilha a invocação de Francisco de Assis,
retomada pelo Papa, que fala do irmão Sol, que implica numa forma de
fraternidade com aquilo que os cristãos denominam de o Criado?
O Papa teve a sorte de encontrar no cristianismo São Francisco de Assis.
Já que sem ele, as referências teriam sido muito reduzidas. Sabemos
hoje que possuímos células que se multiplicaram desde a origem da vida e
de que somos compostos, como qualquer ser vivente. Se percorremos a
história do Universo, nos damos conta que carregamos conosco todo o
cosmos e de uma maneira singular.
Existe uma solidariedade profunda na
natureza, ainda que sejamos diferentes, por causa da consciência, da
cultura. Mas mesmo sendo diferentes, todos somos filhos do Sol. O
verdadeiro problema não consiste em nos reduzirmos ao estado da
natureza, mas de não nos separarmos do estado natural.
O Santo Padre pode encontrar na Bíblia um certo número de pontos que justificam esta compreensão. Pessoalmente, acredito que a Bíblia
narra uma criação do homem totalmente separada daquela dos animais e
que começou a suscitar este pensamento antropocentrista. A mensagem de Paulo
prolonga esta compreensão, separando o destino humano depois da morte
dos outros seres vivos. Parece-me que esta concepção separa a
civilização judaico-cristã das outras grandes civilizações
Mas a propósito, na encíclica Laudato Si', o Papa dá uma interpretação oposta do Gênesis...
É verdade, podem ser formuladas interpretações cosmogônicas do Gênesis, sobretudo porque Elohim,
o termo do Gênesis que denomina Deus, é um plural singular ao mesmo
tempo uno e múltiplo. Aí podemos ver uma espécie de turbina criadora.
Também é verdade que no Gênesis se lê que no princípio Elohim separou
o céu e a terra. Trata-se de uma ideia interessante, já que para se ter
um universo é preciso uma separação, entre os tempos (passado,
presente, futuro) e o espaço (aqui e ali).
Mas tenho pessoalmente uma concepção que herdei de Spinoza,
baseada na capacidade criadora da natureza. Creio que a criatividade
não nasça de um criador inicial, mas de um evento inicial.
O senhor conhece bem a América
do Sul. O senhor tem a impressão que a reflexão de Francisco está muito
ligada à cultura argentina?
Sim, concordo. O que sempre me
impressionou é perceber na América Latina uma vitalidade, uma capacidade
de inicitiva que nós não temos. Por exemplo, encontro na encíclica este
sentido da pobreza
tão forte neste continente. Na Europa, esquecemos totalmente os pobres,
marginalizando-os. Mas na encíclica, o conceito de pobreza é vivo, como
nas manifestações do Movimento dos Agricultores sem Terra, no Brasil.
E seguramente a Argentina,
que conheceu tantas provas, que teve que cancelar a própria dívida
declarando a bancarrota, é um País com uma vitalidade democrática
extraordinária. Não acho que é um milagre, mas era preciso que um Papa
viesse de lá, com esta experiência humana. É um Papa encharcado da
cultura andina que opõe ao 'bem-estar' exclusivamente materialístico
europeu o estar bem (o buen vivir) que
representaa uma plenitude pessoal e comunitária autêntica. A mensagem
pontifícia é um convite à mudança, à uma nova civilização e eu acho isto
muito tocante. Esta mensagem é, talvez, o primeiro artigo de um apelo
para uma nova civilização.
Para além desta encíclica, como o senhor percebe a contribuição das religiões para a nossa sociedade?
Todos os esforços para erradicar as
religiões faliram completamente. As religiões são realidades
antropológicas. O cristianismo conheceu uma contradição entre alguns dos
seus desenvolvimentos históricos e a sua mensagem inicial, evangélica,
que é o amor dos homens. Mas quando a Igreja perdeu o seu monopólio
político, uma parte reencontrou a sua fonte evangélica.
A última encíclica é
integralmente um retorno às origens evangélicas. Os cristãos, quando são
animados pela fonte da sua fé, são tipicamente pessoas de boa vontade,
que pensam no bem comum. A fé pode ser uma armadura contra a corrupção
dos políticos e administradores.
A fé pode dar coragem. Se numa era
virulenta como a nossa, as religiões voltarão à sua mensagem inicial,
particularmente o Islã, já que Alá é o Clemente e o Misericordioso, elas poderão se compreender.
Hoje, para salvar o nosso planeta verdadeiramente ameaçado, a contribuição das religiões não é supérfluo. Esta encíclica é uma demonstração evidente disto.
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Fonte: IHU online, 10.09/2015
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