Jacques Gaillot (foto da Internet)
O bispo francês Jacques Gaillot, demitido da sua diocese de Évreux (França), em Janeiro de 1995, foi esta tarde recebido pelo Papa Francisco no Vaticano.
Quer
antes quer depois de ter sido forçado a deixar a sua diocese, Gaillot
nunca abdicou do seu papel de bispo, de pastor, junto dos mais
desfavorecidos: sem-abrigo, refugiados, pobres, desempregados, vítimas
de tráfico humano estão entre as pessoas que ele vem apoiando desde há
muito, quer pessoalmente quer na sua diocese virtual dePartenia, criada quando a internet era ainda embrionária.
No livro Deus Vem a Público (ed. Pedra Angular) publiquei
uma entrevista com Jacques Gaillot (na realidade, uma síntese de duas
entrevistas feitas em Maio de 2007 e Setembro de 1997, esta última
realizada em conjunto com Manuel Vilas Boas).
Fica a seguir o texto:
Nascido
a 11 de Setembro de 1935, Jacques Gaillot esteve em Portugal em 1997 e
2007. Depois de ter sido forçado pelo Vaticano a sair da diocese de
Évreux, no Noroeste de França, em Janeiro de 1995, o bispo foi nomeado
como responsável de Parténia, uma diocese extinta no século VII. Essa
inexistência física levou-a a abrir uma página na internet,
na qual escreve um catecismo “alternativo”, troca correspondência ou
facilita o acesso a páginas de outras instituições e associações.
Pensa
que foi uma razão política que levou o Vaticano a demiti-lo de Évreux.
Assumindo-se como um homem livre, Jacques Gaillot acusa o então ministro
do Interior francês, Charles Pasqua, de estar por detrás da sua
destituição. Gaillot era conhecido pelas suas posições polémicas sobre
temas como o preservativo, a homossexualidade, a pobreza, a exclusão, a
falta de habitação ou o desarmamento. Opiniões que o levavam a ser
presença constante na comunicação social, o que também não agradaria aos
poderes – da Igreja e do Estado.
Ao
contestar, num livro muito crítico, as restrições que o ministro
propunha na política de imigração, Gaillot assinou a própria demissão.
Sem desistir: abriu a página na internet e ali fala com toda a gente.
Com esta nova diocese “sem fronteiras”, voltar à sua diocese seria,
agora, um passo atrás.
Jacques
Gaillot – que continua no activo como bispo e sentindo-se parte da
Igreja, ao contrário do que algumas pessoas possam imaginar – fez o
serviço militar na Argélia, o que o levou a interessar-se pela
não-violência. Ordenado padre em Março de 1961, trabalhou em várias
estruturas de formação, até ser nomeado bispo de Évreux em Maio de 1982.
Tem publicados dezena e meia de títulos, entre os quais, em português, Conversas no Adro da Igreja (ed. Notícias/Casa das Letras) e No que Eu Acredito (ed. Piaget).
Com que Igreja sonha?
Uma
Igreja do terreno, da base, de homens e mulheres abertos aos outros,
que acolhem e trabalham com os outros. Cristãos e cristãs que estão na
metidos na massa humana, com outros. Os cristãos são o rosto de pessoas
que não suportam a injustiça, que se batem pela paz. E levam a mensagem,
o fermento do evangelho.
Esse desejo nasce também da sua experiência como bispo de Parténia?
Sim,
há muita gente que se sente excluída da sociedade, da Igreja, mas que
continua viva e a bater-se no interior dos organismos – da Igreja ou não
– e que transporta a esperança do evangelho.
Após estes anos depois da sua demissão de Évreux, que balanço faz? Continua a sentir-se como bispo católico?
Agradeci
a Roma o que vivo. Estou desligado de tudo o que é institucional e
decididamente com as pessoas. Se fosse bispo de Évreux, não estaria aqui
neste momento. Tenho esta possibilidade de estar com as pessoas.
Noutros tempos, eu tê-las-ia encontrado como podia, mas não era fácil
uma vez que era bispo. É para mim uma grande alegria, uma grande
esperança. Não pensava, na minha vida, fazer o que faço hoje.
Como olham hoje para si as pessoas?
Vêem-me
como um bispo que, justamente, conheceu a exclusão. E dizem: “Um bispo
que é como nós, que foi posto de lado, tal como nós. Perdemos o
trabalho, somos desconsiderados – e há alguém da Igreja que é como nós e
pode compreender-nos.” Portanto, sou um sinal para muitos excluídos,
hoje. Se estivesse integrado, como bispo, numa diocese, não seria esse
sinal para tais pessoas.
Isso significa que continua a estar ao lado dos sem-abrigo, dos marginalizados?...
Sim.
Estou com os sem-papéis, com os que não têm alojamento, com os presos
políticos, com quem vive angustiado, que sobrevive na sociedade. Depois
de Évreux, é uma segunda viva, um segundo povo.
Os
grupos que o apoiam são vistos como contestatários da Igreja oficial. O
que é mais importante nestes grupos: a contestação, a reivindicação ou
outra coisa?
Creio
que é bom haver grupos, na Igreja, que estejam preocupados pela reforma
da Igreja: a democracia, o lugar das mulheres... Creio que, para
reformar a Igreja, é preciso estar ligado ao mundo da exclusão. É bom
que também haja grupos que, em relação à instituição Igreja, digam que
não é aceitável deixar as mulheres de lado, não haver práticas
democráticas, etc. É importante que esses grupos existam.
São
grupos que colocam questões internas como o celibato, a ordenação das
mulheres, a moral sexual. São questões importantes para discutir?
É
bom que haja grupos para isso, mas não são as minhas questões. As
minhas são as questões da sociedade: a injustiça, a paz, a ecologia. Mas
é legítimo que haja cristãos que queiram a reforma da Igreja e
continuem a contestar. Sobretudo, se são cristãos inteligentes e muito
comprometidos, os bispos devem contar com eles.
Coloca a questão da sociedade porque é esse o grande desafio para a Igreja e para os cristãos?
A
Igreja é relativa à sociedade. Se não houvesse sociedade, não haveria
Igreja. A evolução profunda da sociedade faz com que a Igreja deva
mudar. A dificuldade para a Igreja de hoje é a modernidade. Tudo está
centrado no indivíduo, que é autónomo e que deve fazer o seu caminho,
que deve encontrar os seus valores, o seu sentido, que é responsável da
sua vida. E se lhe dizem que há uma lei natural, que diz isto e aquilo,
ele não aceita numa lei que vem de fora.
O
indivíduo conduz a sua vida, isso é a modernidade. Essa é uma das
dificuldades da Igreja e da sociedade de hoje, em Espanha, em Itália,
etc., porque na modernidade o indivíduo tem direito à felicidade, à
realização de si mesmo, ser verdadeiro consigo mesmo.
Há
igrejas protestantes que avançaram por esses caminhos, mas também
enfrentam crises profundas. O problema é a coerência dos cristãos?
A
santidade de uma Igreja – Católica ou Protestante – é a sua ligação com
os oprimidos, com os que são excluídos. Isso é o importante. A Igreja
nunca é ela mesma sem os pobres. O importante para a Igreja não é que
ela seja bem considerada pelos poderosos, pela gente importante, é que
ela seja verdadeiramente acolhida pelos pobres, pelos pequenos. É essa a
saúde, a força da Igreja
Pessoalmente, como se definiria: um bispo contestatário, um cristão rebelde?
Não,
sou um bispo, creio que fui libertado pelo evangelho, fui seduzido pela
liberdade de Cristo. Sou um bispo que não está aí sobretudo por causa
da doutrina, para chamar à lei, para defender a instituição, mas para
despertar as pessoas para aqueles que estão à beira do caminho, aos que
sofrem. São os seres humanos que estão em primeiro lugar. Estou aí por
eles.
Considera-se um desempregado da Igreja?
Nem
pensar. Posso dizer-lhe que os meus dias estão bem ocupados. E que, em
Paris, estou com os excluídos: famílias sem alojamento, jovens sem
trabalho, estrangeiros sem documentação...
É esse o trabalho de um bispo?
O
trabalho de um bispo é estar onde o povo sofre, onde o futuro do homem
está em perigo. Por isso é bom que eu esteja perto de outros, junto dos
excluídos.
O que pensa da utilização do preservativo? Foi também um tema falado a propósito da sua demissão...
É uma questão que me parece secundária, perante o problema da sida...
Apenas para a sida?
O
preservativo é um meio de luta contra a sida. Há a continência, há a
fidelidade e há o preservativo. É preciso que cada um se sinta
responsável e tome os seus meios, na sua situação, para não semear a
morte e para respeitar a vida.
Mas o preservativo é também um meio de contracepção?
Não
se deve tomar o preservativo como um meio de contracepção, mas antes
como esse respeito do outro e da vida. E acho esquisito que a Igreja se
fixe nesse aspecto. Esse deve ser um problema que deve ser gerido
simplesmente, colocando as pessoas perante a sua responsabilidade.
O que pensa do aborto?
Penso mal: o aborto é matar a vida, por isso sou contra o aborto.
É um crime?
É
um mal, é uma desgraça. Encontrei jovens raparigas que tinham abortado e
que me disseram: ‘É a pior coisa que pode acontecer a uma mulher’. Mas
admito que há situações de angústia, sobretudo de jovens mães, e que se
possa recorrer ao aborto. Em todo o caso, não se deve julgá-las. Penso
também que qualquer país possa tentar fazer uma lei para resolver este
quadro de miséria.
Quem deve decidir entre fazer ou não fazer o aborto?
Em primeiro lugar, os interessados.
Nas matérias de moral sexual, critica-se muito a Igreja por se intrometer na vida privada. O que pensa disso?
Em
geral, é verdade que a Igreja está demasiado presente nas questões da
sexualidade e seria melhor que estivesse mais no terreno da justiça.
Penso que o papel dos responsáveis da Igreja é, talvez, esclarecer, as
consciências das pessoas, de esclarecer um pouco as suas decisões.
A homossexualidade não é aceite pela Igreja...
Há
pessoas que são homossexuais. Existem e sofrem de discriminação – na
família, no trabalho, na religião. Isso deve interrogar a Igreja, para
que não os excluamos. Já há muitos excluídos na sociedade, é preciso que
a Igreja não faça o mesmo. Eu sempre defendi para que essas pessoas
sejam acolhidas na Igreja, sejam escutadas na Igreja, que tenham também o
seu lugar na Igreja.
Alguma vez presidiria a um casamento de homossexuais?
Nunca.
Penso que é lamentável que se utilize a palavra “casamento” para os
homossexuais. Casamento tem por base um homem e uma mulher, é o
casamento da diferença, não é preciso utilizar este termo em relação aos
homossexuais. Isso não é favorável nem a uns nem a outros.
No Catecismo da Igreja reafirma-se o acolhimento às pessoas, aos homossexuais, mas condena-se o acto. O que pensa disso?
Tento
nunca julgar as pessoas, temos o dever de as acolher. E se não as
acolhemos, não podemos reclamar-nos do evangelho. É preciso compreender o
sofrimento, as suas dificuldades. É preciso que essas pessoas possam
viver e, também na Igreja, ter responsabilidades. Dizer que alguém é
homossexual é eximir-se a responsabilidades.
Na história, a Igreja defendeu a guerra justa. Há alguma guerra justa?
Não
posso juntar a palavra ‘justa’ à palavra ‘guerra’, não é possível. Para
mim é aplaudir o fogo. Portanto, não falaria de guerra justa, e sempre
estive contra a guerra...
Defende a não-violência...
Absolutamente. Foi durante a guerra da Argélia que descobri a não-violência. Tornei-me um militante não-violento.
A não-violência é um princípio ainda praticável ou trata-se de uma utopia que acabou com Gandhi e Luther King?
A
não-violência não é alternativa à violência, que tudo regulamenta. A
não-violência é uma opção, não se decreta. É uma atitude, é um espírito,
é preciso que a maior parte possível das pessoas seja não-violenta,
para que se possa oferecer resistência. Dito isto, existem na sociedade
estruturas de violência que fazem com que estruturas injustas suscitem
reacções de violência. A miséria suscita situações de violência, mas a
violência do Estado e da sociedade existe primeiro. Se se suprimir esta
violência, talvez se suprima a outra.
A
violência gera a violência e não tem solução, é um impasse. Por
exemplo, na Argélia: é claro que é o governo militar que está
relacionado com aquela violência. Não é possível que, em Argel, onde há
tantos quartéis, não se faça esta relação. A França apoia o governo
argelino, vendendo material militar. Temos coisas aqui a fazer: ao nível
diplomático, comercial, ou da venda de armas. É assim que se começa.
Tem uma página na internet. Isso é uma vingança do silêncio que lhe foi imposto?
Estou
na Internet porque fui aconselhado por amigos. Diziam-me ‘É importante,
porque se és bispo de Parténia, esse é o meio que te convém’. Esse é um
modo de comunicar, para mim muito interessante, porque assim posso
franquear todas as fronteiras...
... E comunicar no deserto?
O
deserto está prestes a florir, porque por todo o lado há comunicações
que se estabelecem e comunicar é viver. Por isso, tento fazer florir o
deserto.
O direito de opinião existe na Igreja?
Há uma opinião pública na Igreja, é preciso que todos os cristãos tenham oportunidade de manifestar a sua opinião.
Está de acordo com a ordenação das mulheres?
O
que se passa na sociedade, hoje em dia, repercute-se na Igreja. Há uma
exigência feita por todos, pelas mulheres, para que haja uma parceria
homens-mulheres, tanto na sociedade como na Igreja. Estamos numa Igreja
onde os responsáveis são homens, celibatários e, muitas vezes, idosos. E
é uma batalha a ganhar, que haja mulheres investidas de
responsabilidade. É uma complementaridade, uma riqueza. Temos um
ministério de modelo masculino, é necessário inovar, é preciso procurar,
mas isso acontecerá.
Quando?
Não sei, mas acontecerá. Talvez eu não o veja, mas não se pára a maré que sobe.
O seu catecismo na internet é uma alternativa ao Catecismo da Igreja Católica?
É
uma outra abordagem, sim. Um bispo, normalmente, na sua diocese, é
convidado a fazer o seu catecismo. O Concílio de Trento pediu, aliás,
que cada bispo fizesse o seu catecismo. Então fiz o meu. Mas fi-lo,
partindo das perguntas das pessoas, não de categorias religiosas,
dizendo ‘é isto, imponho-vos aquilo’, mas construindo isso em conjunto, a
partir da experiência dos grupos, das comunidades, perguntando: ‘como
fazeis?’ Portanto, são pessoas de culturas diferentes, de países
diferentes, que constroem em conjunto. Depois se verá...
Há muitas pessoas que lhe escrevem através da internet?
Sim, claro, são milhares de pessoas, sobretudo jovens.
O que lhe dizem?
Primeiro,
manifestam-se felizes por comunicar. As pessoas estão muitas vezes
sozinhas, se são cristãos falam da Igreja e uma vez que tenho internet,
estão ali, em rede... Depois, sobretudo, põem questões sobre o futuro,
sobre a humanidade, a injustiça do mundo, do sentido da vida, duma busca
religiosa – há tantas religiões, as pessoas procuram...
O que pensa do celibato eclesiástico?
É
um sinal importante dado por Jesus e pelo evangelho. Para mim, é também
um sinal importante que eu escolhi. Mas penso que, ao mesmo tempo, para
os padres, deve ser concedida a liberdade de escolher. Hoje, na
cultura, na evolução do mundo, é uma coisa que deve estar na liberdade
de decisão.
Qual é o futuro da Igreja?
O
futuro da Igreja está em ela voltar-se para a humanidade, para a
sociedade. As questões prioritárias são as questões da humanidade. A
saber, as questões da injustiça, do combate pela paz, da salvaguarda da
criação. Esse é o grande objectivo: que as igrejas, na sua acção
ecuménica, se voltem nessa direcção.
E o seu futuro? Aceitaria regressar a uma diocese?
Estou
bem como estou. Não tenho ambições pessoais. No fundo, agradeço o que
se passou comigo, pelo caminho que me foi dado, ao mesmo tempo
apaixonante e rude.---------
Fonte: http://religionline.blogspot.com.br/ 01/09/2015
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