Ney Brasil Pereira*
"O antigo escritor deve ter feito a si mesmo esta pergunta: Por
que os machos humanos não têm este osso? E a sua resposta deve ter
sido: porque ele foi tirado de Adão para a formação de Eva'. Assim, esse
detalhe é etiológico, como tantos outros da narrativa do Jardim do
Éden"
O teólogo cita “uma antiga homilia do grande Sábado
Santo” . "Entre as palavras dirigidas pelo ressuscitado a Adão, no mundo
dos mortos, o autor formula as seguintes: “Adormeci na cruz e, por tua
causa, a lança penetrou no meu lado, como Eva surgiu do
teu, ao adormeceres no paraíso. Meu lado curou a dor do teu lado. Meu
sono vai arrancar-te do sono da morte. Minha lança deteve a lança que
estava dirigida contra ti”.
Introdução
O artigo de capa do último número de Biblical Archaeology Review[1] tem por título uma pergunta, traduzindo do inglês: “Eva foi feita da costela de Adão, ou do seu baculum?” O artigo é assinado por Ziony Zevit, que escreveu também um livro intitulado “What really happened in the garden of Eden?”[2] Quanto ao termo latino baculum, somos logo informados de que é o “osso do pênis”... e que é desse “osso do pênis” de Adão, não da sua costela, que Eva foi feita, segundo Gn 2,21-22! O que, além de inaudito, parece-me inaceitável.
O assunto interessou-me sobremaneira, porque há tempo venho propugnando por uma tradução diferente do hebr. tsela‘, correntemente traduzido, em todas as línguas modernas, por “costela”.
A meu ver, por argumentos que já expus em pequeno artigo publicado
nesta revista[3], a tradução correta, seguindo a mais antiga versão do
texto hebraico, a Septuaginta, é “lado”, um dos dois lados do homem, no caso, de Adão. A palavra grega é pleurá, termo que João
usa quatro vezes no seu evangelho (Jo 19,34. 20,20.25.27), sempre
referindo-se ao lado de Cristo, isto é, seu peito, traspassado pela
lança do soldado e na marca de cuja ferida Tomé queria introduzir a mão. Também Lucas emprega o mesmo termo para designar o lado de Pedro,
tocado pelo Anjo, em At 12,7. Ora, é sabido que os Pais gregos
constantemente referem-se à cena do lado traspassado de Cristo, do qual
“saiu sangue e água” (Jo 19,34), como cena paralela à de Gn 2,22: como,
de um dos lados de Adão, o Senhor Deus fez Eva, assim também, do lado de
Cristo surgiu a nova Eva, a Igreja.
Discussão
Mas vejamos a argumentação de Zevit. Ele começa
reconhecendo que uma dificuldade para a sua tese, segundo um de seus
críticos, é o fato de que Gn 2,21 fala de dois tsela‘ : ora, Adão não podia ter dois baculum, evidentemente. Ele reconhece também que o termo hebr. tsela‘, em si, não sugere a noção de “costela”.
E isto porque, como é sabido, esse termo, que ocorre cerca de 40 vezes
na Bíblia hebraica, sempre se refere ao lado de um edifício ou do altar
ou da arca (por exemplo: Ex 25,12;26,20.26; 1Rs 6,8.34), ou o flanco,
vertente, lado de uma elevação (2Sm 16,13).
A seguir, porém, indevidamente, diz que a mais antiga tradução de tsela‘, na Septuaginta, é costela, sem citar o termo gr. pleurá, o qual, como já observei acima, no entendimento de João e dos Pais gregos, não significa costela, mas lado, o “lado” de Adão,
respectivamente, o de Cristo. Se fosse “costela”, seria errado, diz
Zevit[4], e nisso tem razão. E agora argumenta (tradução minha): “A
palavra tsela‘, no contexto da narrativa, deveria ser traduzida por um
termo não específico, geral, um dos membros laterais laterais do eixo
vertical do corpo humano ereto: mãos, pés, ou, no caso dos machos, o
pênis. Desses ‘apêndices’, o único que não tem osso é o
pênis”. E continua: “Ossos no pênis são comuns nas estruturas dos
mamíferos machos, especialmente os carnívoros e primatas, nos quais
funcionam como elemento endurecedor. [...] O antigo escritor deve ter
feito a si mesmo esta pergunta: Por que os machos humanos não têm este
osso? E a sua resposta deve ter sido: porque ele foi tirado de Adão para
a formação de Eva”. Assim, esse detalhe é etiológico, como tantos
outros da narrativa do Jardim do Éden[5].
Zevit continua: “Gn 2,21 refere-se a Deus ‘fechando a
carne’ em baixo do tsela‘ que ele tirou para fazer a mulher. Este
detalhe também deve conter uma informação etiológica. Mas o que seria
esse ‘fechar a carne’?”[6] Na resposta a esta pergunta,
Zevit entra em detalhes anatômicos que não vou reproduzir aqui. Fala de
um processo que deixa uma cicatriz, “visível depois do nascimento e por
toda a vida no lado debaixo do pênis” [7] ... A seguir comenta a
crendice popular de que “falta uma costela” no homem, quando, tanto o
homem como a mulher tem, e sempre tiveram, doze pares de costelas.
Quanto à exclamação de Adão a respeito de Eva como “osso dos meus ossos e
carne de minha carne” (Gn 2,23), Zevit tem uma explicação muito
estranha: “A palavra hebraica traduzida como carne nesse v. é basar,
um termo muitas vezes usado, no hebraico bíblico, para designar o
pênis, p.ex. Ex 28,42 (?); Lv 15,2-3.16 (?); Ez 16,26; 23,20[8]...
De resto, ainda quanto à “costela”, dela não se fala
nem a ela se alude em pelo menos quatro outras passagens do texto
bíblico em que aparece a expressão “osso de meus ossos e carne de minha
carne”: Gn 29,14 (Labão, falando com Jacó); Jz 9,2 (Abimelec, dirigindo-se a seus “irmãos”); 2Sm 19,12 e13 (Davi, dando aos sacerdotes Sadoc e Abiatar a incumbência de dizê-lo aos judaítas). Por que, então, seria subentendida somente em Gn 2,23?
Mas voltemos à “tese” de Zevit. Ele propõe que seu ponto de vista é reforçado pelo de Alan Dundes,
um folclorista da universidade de Berkeley, na Califórnia, num estudo
publicado há cerca de trinta anos[9]. Nesse estudo, Dundes chega “à
mesma conclusão sobre o ‘osso formativo’, à base de
dois tipos de pesquisa: 1) estudos do folclore descobriram que algumas
culturas consideravam estranho que o pênis humano não tenha osso; 2)
alguns especialistas em psicanálise propuseram que a narrativa da
formação da mulher a partir de um osso tirado do corpo masculino
refletiria a preocupação dos machos de ter um papel maior no processo do
nascimento de seus filhos”. [...] Ele então cita a conclusão de Dundes:
“Creio que há alguma evidência para demonstrar conclusivamente que Eva foi criada do pênis de Adão...”[10].
E Zevit arremata: “Talvez não seja por acaso[11] que, tanto Dundes como
eu – ele primeiro, depois eu – tenhamos chegado a conclusões
semelhantes, sobre esse incidente da narrativa do Jardim. Uma tradição
judaica aconselha àquele que, após muito esforço, chegou a conclusões
que depois ele descobre já terem sido alcançadas por outrem antes dele,
que recite a seguinte ‘bênção’: ‘Bendito seja Aquele que dirigiu a mim a
ideia desse outro’.”
Conclusão
Espero que minha síntese do artigo de Zevit,
redigida com toda a fidelidade possível, tenha demonstrado
suficientemente que sua “tese”, melhor dizendo, sua hipótese, não tem
cabimento. Não por considerar obsceno, absolutamente, o “osso do pênis” ou, como ele diz em latim, o baculum
do homem. Mas a argumentação é artificiosa e frágil demais, como
percebe quem sobre ela reflete. E isto, quando a solução a meu ver
evidente, digna e bela, está na própria tradução grega, interpretada
convincentemente, repito-o, pelos usos de pleurá em João 19-20 e nos
Pais gregos. Eva, portanto, segundo o autor de Gn 2,21-22, foi feita não da “costela”, nem muito menos do baculum, mas de um dos lados de Adão.
Para terminar, nada melhor que a citação de breve texto de “uma antiga homilia
do grande Sábado Santo” . Entre as palavras dirigidas pelo ressuscitado
a Adão, no mundo dos mortos, o autor formula as seguintes: “Adormeci na
cruz e, por tua causa, a lança penetrou no meu lado, como Eva
surgiu do teu, ao adormeceres no paraíso. Meu lado curou a dor do teu
lado. Meu sono vai arrancar-te do sono da morte. Minha lança deteve a
lança que estava dirigida contra ti”.
Notas
[1] BAR (Biblical Archaeology Review), Sept./Octob. 2015, vol. 41, n. 5, pp. 33-35.
[2] ZEVIT, Ziony, What really happened in the garden of Eden?” (“O
que realmente aconteceu no jardim do Eden?”), especialmente o cap. 12,
“The First Lady” (“A Primeira Dama”), New Haven, Connecticut and London:
Yale University Press, 2013.
[3] PEREIRA, Ney Brasil, “Costela ou lado de Adão, em Gn 2,21-22? Um
texto de São João Crisóstomo”, in “Encontros Teológicos”, revista da
FACASC, Florianópolis, n.56 (2010/2), pp. 171-175.
[4] ZEVIT, Ziony, in BAR, loc. cit., p. 34.
[5] Id., ibid., p. 34 passim.
[6] Interpretando o hebr., diz o texto gr.: aneplêrôsen sárka
ant’autês (traduzindo: “encheu de novo, restaurou, a carne em lugar
dele”, isto, é, do lado retirado).
[7] ZEVIT, ibid., p. 34, col. direita.
[8] As citações de Êxodo e Levítico, não designam diretamente o pênis, mas as “partes”; as citações de Ezequiel, sim.
[9] DUNDES, Alan, “Couvade in Genesis”, in BEN-AMI, I. e DAN, J.
(eds), Studies in Aggadah and Jewish Folklore, Folklore Research Center
Studies VII, Jerusalem: Magnes Press, 1983, pp. 35-53.
[10] Cit. por ZEVIT, ibid., p. 35, col. direita.
[11] Em inglês há um termo que não encontrei nem no Webster:
serendipity... que é um substantivo, mas, na falta de informação melhor,
traduzi por “por acaso”.
------------
* escreve Ney Brasil Pereira, mestre em Ciências Bíblicas e professor emérito da Facas/Itesc.
Fonte: IHU online, 01/09/2015
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário