DAVID COIMBRA*
Baruch Spinoza já foi meu filósofo preferido, mesmo que a
leitura de seu texto duro fosse uma dor. Compreendia-o melhor quando lia
alguém que interpretava o que Spinoza queria dizer. Aí relia e
concluía:
– Ah…
Hoje, não sei qual é meu filósofo preferido. Gosto de trechos de uns e
de trechos de outros. Um defeito. Ser definitivo cansa menos.
Mas o que gostaria de lembrar, em relação a Spinoza, é que ele era
judeu-português. Isso é importante. Seu nome derivava da cidade de
Espinosa, na Espanha, onde viveu. Naquele tempo, judeus que morassem na
Península Ibérica tinham de fazer de conta que eram cristãos, ou a Santa
Inquisição os purificava numa fogueira pia. A família de Spinoza,
cansada de fingir e sem disposição para ser purificada, mudou-se para a
Holanda, muito mais tolerante. Lá, eles assumiram sua religião e foram
felizes, até que Spinoza começou a divulgar suas ideias.
Então, Spinoza, que já era um refugiado religioso, foi banido de sua
própria religião. O texto de sua excomunhão tem um poder que vara
séculos:
“Maldito seja de dia e de noite, maldito ao deitar e ao se levantar,
maldito ao sair e ao entrar. O Senhor apagará seu nome de sob o sol e o
expulsará por seus malefícios de todas as tribos de Israel. Ninguém pode
falar-lhe diretamente ou por escrito, nem pode fazer-lhe favor algum ou
estar sob o mesmo teto que ele nem dele se aproximar menos de quatro
côvados ou ler qualquer documento que tenha escrito ou ditado”.
O anátema sofrido por Spinoza é o anátema de todos os refugiados do
mundo, em todos os tempos. Porque ele foi banido de uma comunidade que,
de certa forma, já era uma comunidade de banidos. E qual povo pode dizer
que não foi banido algum dia?
Orgulhosos ingleses fugiram da intolerância religiosa e vieram se
homiziar na costa leste americana, no século 17. Depois, entre o fim do
século 19 e o começo do 20, nada menos do que 17 milhões de europeus
correram da miséria e das guerras do Velho Continente e reconstruíram
suas vidas nos Estados Unidos. Alemães e italianos atravessaram o
Atlântico e se instalaram no sul do Brasil, poloneses fizeram o Paraná,
os japoneses foram para São Paulo.
De uns tempos para cá, o Brasil tem recebido haitianos e congoleses, e
nada menos do que 10 milhões de pessoas do mundo todo vivem
irregularmente nos Estados Unidos, apesar dos rosnados xenófobos de
Donald Trump.
Mas nada, nada pode ser tão pungente quanto as cenas que se passam
nas franjas da Europa. Famílias de sírios e africanos implorando para
ter apenas a chance de viver em paz. Aquelas crianças chorando, aqueles
homens rastejando, as mulheres desesperadas, como a sábia Europa pode se
negar a socorrê-los?
Outro grande filósofo, Schopenhauer, dizia que o ser humano só se
sublima quando sente compaixão, e só sente compaixão quando se coloca no
lugar do outro. Como se colocar no lugar dessa gente que grita nas
fronteiras da Europa? Pense em Spinoza. Saiba que eles, hoje, são
malditos de dia e malditos de noite, malditos ao deitar e malditos ao se
levantar, malditos ao sair e malditos ao entrar. Malditos. São só
tristes malditos. Esperando que a humanidade lhes estenda a mão.
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* Jornalista.
Fonte: http://wp.clicrbs.com.br/davidcoimbra/2015/09/01/os-malditos/?topo=13,1,1,,,13
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