Tendo como motivo uma reedição do livro de Umberto Eco, de 1964, Apocalípticos e Integrados (Relógio
D’Água), publicou o Ípsilon na passada semana um artigo de José
Marmeleira, onde se recolhiam declarações de três pessoas que foram
escolhidas — podemos presumir — por terem compreendido e integrado a
lição produtiva e de grande alcance do semiólogo e escritor italiano: o
professor universitário Arnaldo Saraiva, o crítico e poeta Pedro Mexia, o
estudioso de BD Pedro Moura. É um artigo que confirma e actualiza um
fenómeno cultural visto como produtor de efeitos de longa duração e
largo espectro, facilmente detectáveis até pelo sismógrafo menos
apurado. Já em 1990, oEfetto Eco foi assunto para um livrinho
com esse título. Tal como os abalos tectónicos, o “efeito Eco” é
naturalmente para ser repercutido.
Os depoimentos recolhidos no artigo
reproduzem essa atitude de adesão frenética a um fenómeno excitante: Eco
é sempre citado e referido para lhe ser dada razão e fazer soar o
aplauso. Ele já teria morrido de medo e privação se deixasse de escutar a
aclamação unânime tanto das massas integradas como das elites fugidas
ao apocalipse.
A grande proeza “vanguardista” de Eco foi a de ter
consagrado a cultura de massas e estabelecido uma paz perpétua entre a
elite e a massa. Com enorme vocação demagógica e génio para o exercício
da homologação, ele propôs-nos que as mais profanas comédias dos best-sellers contemporâneos são tão excitantes e dignas como a Divina Comédia;
e que isso da ciência dos signos é tão interessante e profundo nos
Estóicos como num romance policial; e que nos espera uma felicidade
imensa, capaz de esconjurar a maldição apocalíptica, se lermos a Madame Bovary como
um romance de aventuras. Ele instaurou com êxito o grande regime da
grande tolerância cultural, da culturalização generalizada, precisamente
aquela onde prosperam as formas da nova barbárie. E é esta
indiferenciação cultural, expurgada de toda a imprecação e de todo o
furor, de toda a crítica e resistência política, que suscita o aplauso e
incute a ilusão de actualidade.
"A Eco e à sua
frivolidade devemos opor um
outro intelectual italiano que
está nos
antípodas: Pasolini."
As categorias dos apocalípticos e dos
integrados serviram a Eco para dar caução teórica à sua vocação de
comediante e enciclopedista estéril. Mas serviram também para se
apresentar como um mágico da nivelação de público, de géneros e até de
profissões: nivelação do kitsch com a vanguarda, fusão do jornalista com o universitário, do grande teórico e erudito com o showman que
se dá como atracção a uma “classe média” planetária que alimenta uma
devastadora “democracia cultural”. A categorização dos apocalípticos e
integrados serviu-lhe também para ministrar ao mundo literário a sua
lição romanesca, de uma “inteligência artificial” extraordinária, de um
“computador fora do comum” (foi Jacques Le Goff que o disse), iniciada
em 1983 com O Nome da Rosa, romance que, disse um outro grande
crítico italiano (Alfonso Berardinelli), “permite a qualquer imbecil
recuperar rapidamente quatro noções de sociologia, cinco noções sobre a
Idade Média, um pouco de história da arte”. E tudo isto bem condimentado
com o elemento policial.
O “efeito Eco”, parecendo tão actual, rasura
todo o apocalipse latente no presente (este presente, o que passou e o
que há-de vir, ou seja, não tem nada de contemporâneo). A Eco e à sua
frivolidade devemos opor um outro intelectual italiano que está nos
antípodas: Pasolini. Há mais salvação na visão apocalíptica de Pasolini
do que na gaia ciência de Eco; há mais futuro e capacidade de penetrar
no nosso tempo na força pasoliniana que vem do passado do que no tão
contemporâneo “efeito Eco”.
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* Colunista do jornal O Público de Portugal.
Texto com português de Portugal.
Fonte:http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-defeito-eco-1706620
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