O físico budista Alfredo Aveline, 66 anos, no Instituto Caminho do Meio, em Viamão
Casado, com cinco filhos, o físico gaúcho Alfredo Aveline, 66 anos, Discípulo do mestre Chagdud Rinpoche (o fundador do Templo Budista de Três Coroas), é presidente do Centro de Estudos Budistas Bodisatva e tornou-se uma referência na disseminação do budismo tibetano no Brasil. Reconhecendo suas qualidades de líder espiritual, Rinpoche, em dezembro de 1996, ordenou Aveline como Lama Padma Samten – (“lama” é o sacerdote; “padma” significa lótus; e “samten” refere-se à capacidade meditativa). Desde então, Lama Samten tem viajado, ensinado e ajudado a estruturar e manter grupos pelo país. Fundada em 1986, sua organização tem sedes nas cinco regiões brasileiras e planeja expansão dentro do Estado. Recebeu treinamento de professores de várias tradições budistas, incluindo a zen, e viajou à Ásia em muitas ocasiões. Contribuiu para trazer grandes mestres para o Brasil, incluindo o Dalai Lama. Professor de física da UFRGS durante 25 anos, de 1969 a 1994, Samten é articulista da Revista Vida Simples e teve parte de seus ensinamentos publicados nos livros Joia dos Desejos, O Lama e o Economista, Ensinamentos de Bolso: Relações e Conflitos e Mandala de Lótus. Mora no centro principal do Instituto Caminho do Meio, em Viamão, e divide-se entre os cuidados com os filhos mais jovens e as viagens pelo Brasil. Nesta entrevista, concedida em uma manhã de inverno, em frente a sua lareira e acompanhada de bolo caseiro de milho e chá indiano com especiarias, o Lama fala sobre como o budismo pode deixar a vida mais calma nos dias de hoje, mas alerta: não é preciso acessá-lo para sempre. – O budismo é um remédio. Tem um momento em que ele é abandonado – ensina.
O senhor foi professor universitário de física durante 25 anos. Como se tornou budista?Demorou um pouco de tempo. Praticava yoga quando adolescente, por volta dos 16 anos, no início da década de 1960. Eu vivia na cidade de Rio Grande, que considero minha cidade natal. Nasci em Porto Alegre, mas vivi lá toda a minha juventude, até voltar para estudar na Capital. Tive essa conexão com a yoga, mas tinha a sensação de que tinha algo muito profundo a ser descoberto. Fui buscar por dentro da ciência, mas acabei me encontrando com o budismo, no início dos anos 1970, e com o movimento ecológico, já no final da década. Isso foi por meio de amigos como o Celso Marques (filósofo e ex-presidente da Agapan) e o José Lutzenberger (ecologista morto em 2002), com quem tive bons momentos. Um deles foi a luta contra a instalações das centrais nucleares. Meu interesse foi se ampliando e percebi que a questão ecológica demandava uma transformação interna. Estava lecionando na universidade e vi a limitação do método científico. Vi como os cientistas se enganam. A gente olha a realidade, ela parece de um jeito, mas na verdade é de outro. Fiquei interessado pelo erro, em estudar como a mente se engana. O budismo ajudou a entender isso. Aí juntou tudo: movimento ecológico, física e budismo.
Como foi sua participação desse momento no ambientalismo?
Depois de 1974, na época do general Ernesto Geisel, foi feito o acordo Brasil-Alemanha para implantar centrais nucleares. Decidiram fazer uma no Rio Grande do Sul, e fui uma das pessoas que escreveram os primeiros textos dentro da comunidade científica contra as centrais nucleares. Fiz isso com meus alunos da UFRGS. Passei a integrar a Sociedade Brasileira do Progresso da Ciência. Convidaram-me para discutir o assunto na Sociedade Brasileira de Física. Realizei vários encontros, fóruns sobre o tema na Assembleia Legislativa. Em um certo momento, o deputado Carlos Augusto de Souza fez uma emenda proibindo a construção (de usinas nucleares) no Estado, ao lado da Borregaard. Outras assembleias legislativas no país começaram a fazer o mesmo. O governo veio aqui tentar convencer os deputados. Depois veio o governo federal e vetou a lei. Mas o programa ficou congelado por aqui.
Como o senhor fez a transição da ciência para a religião?
Estava no terceiro ano de Física, estudando teorias antigas. Minha turma era unida, e questionamos por que estudar as teorias antigas e não as modernas. Achávamos que estudar física quântica traria mais respostas. Mas essas teorias modernas da física não eram um conteúdo da universidade. Quando terminei a faculdade, fiz pós-graduação e estava muito focado em entender aquilo. Comecei a estudar os clássicos: Niels Bohr, Albert Einstein, Max Planck, Erwin Schrödinger, que traziam diferentes visões. Eles se digladiavam! Comecei a me posicionar dentro das explicações filosóficas. Vi que havia um paralelismo: como a mente funciona e como ela percebe as coisas. E aí, surge o espaço para o engano. Isso está nas apresentações dos livros. Aquela parte que a gente costuma pular. Li um outro autor, chamado Albert Messiah (físico francês), que falava sobre a questão da medida. Me pareceu interessante. Não consegui ir até o fim, pois, à medida que descortinei, migrei para o budismo. O cientista de modo geral pensa que a medida é neutra, mas ela não é. Tem sempre uma pergunta que vem dentro de uma teoria. Por isso que eu pergunto: qual a intensidade do campo elétrico? Tem uma porção de conceitos anteriores operando dentro da pergunta. E isso já enfoca as possibilidades de resposta. Niels Bohr se deu conta disso, e criou uma álgebra e um processo de gestão do conhecimento que leva isso em conta. Ele cria a possibilidade de sair de dentro de uma perspectiva e pular para outra. Isso se aplica não só à física quântica, mas ao mundo inteiro. É como se o mundo todo fosse quântico. Estamos aqui calmos, em uma bolha de realidade, mas quando passarmos para outra situações, vamos mudar a perspectiva, vamos para outra bolha. São os saltos quânticos.
O que são saltos quânticos?
Vivemos dentro de bolhas de realidade. Essas perspectivas criam realidades, que criam coerências, causalidades, urgências, visões de futuro. Saltamos de uma bolha para outra. A gente olha a realidade de um jeito, mas trocamos a base de raciocínio de acordo com a realidade que queremos ver. Isso são os saltos quânticos. A física quântica, nessa perspectiva, é abordada em uma visão mais filosófica, mais psicológica. Os físicos, quem está dentro da universidade, torcem o nariz para isso. Acham que é especulação sem sentido. Mas, de fato, quando as pessoas estão doentes, elas estão doentes dentro de uma bolha de realidade. Tem alguma coisa que as adoece, trabalho, relacionamento. Elas têm algo que está pesado, mas se elas mudarem a posição da mente, pode ser que aquilo não pese mais. Na área médica, especialmente dentro das terapias alternativas, as pessoas veem que, se a mente se posicionar de outra forma, isso não incomoda mais, alivia a tensão, desaparece, tudo muda. É assim que as religiões funcionam. Elas rezam pelas pessoas, e aquilo mostra uma outra perspectiva. Quando trocamos a bolha de realidade, aquilo muda.
Como trocar a bolha de realidade?
O budismo não diz que a gente deva mudar de bolha. Ele observa que a gente opera em várias bolhas ao mesmo tempo. Temos várias identidades no mundo. Cada identidade tem coerências diferentes, regras diferentes. As pessoas têm a bolha de mãe, a bolha de funcionário, a bolha de aluno da pós-graduação. As bolhas são os diferentes papéis que a gente desempenha. Quando saio de uma bolha para a outra, o contexto muda, uso outros referenciais para me movimentar.
O senhor é muito procurado por pessoas que querem mudar ou curar seu estilo de vida?
Sim, essa é uma das portas de entrada. As pessoas estão doentes, com crises familiares, querem achar uma outra saída. Olhar de forma mais ampla a própria realidade.
E muitos permanecem no budismo?
Entre os meus alunos, quase todos passaram por esse processo de mudança na vida. Aqui (no Centro de Estudos Budistas Bodisatva – CEBB, em Viamão) a gente tenta estabelecer uma base mais permanente. Vivem aqui 80 adultos e 30 crianças. Elas não têm obrigações, elas escolhem morar neste local porque se identificam. Temos uma escola também, onde ensinamos as crianças. É uma escola não religiosa, que tem a base da filosofia budista, mas que ensina para a vida, ensina como escolher bolhas melhores.
Como é feita a escolha das pessoas que vivem no CEBB?
Elas vêm a partir de contato com outras pessoas. As pessoas se unem por afinidade. Sempre me consultam. Temos uma coordenação que opina, monitora, mas neste momento não temos mais lugares por aqui. Temos outros espaços como este no país. Estamos na Bahia, em Pernambuco, Goiás, Paraná, Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Aqui é a matriz, é o maior centro. Eu os visito constantemente, viajo muito para acompanhar esses espaços e fazer esse esforço administrativo. Temos três escolas, uma aqui, outra na Vila Castelinho (próximo à sede do Caminho do Meio) e outra que fica no Alto Paraíso, em Goiás. Estamos seguindo nosso processo, expandindo. Compramos uma área na região dos cânions, em breve tem mais um vindo.
Quem paga para manter esses centros?
Aqui não tem mensalidade. A gente acha importante que seja assim, para manter a pureza. Nosso método é a tigela do Buda. Ele pedia. Fazemos eventos, e quem pode contribuir, contribui. Umas pessoas pagam para estar aqui, outras recebem. Mas fazemos muitos eventos. Aí as pessoas ajudam. Por exemplo, os pais colaboram na escola.
O papa Francisco manifestou recentemente, por meio de uma encíclica do Vaticano, a preocupação com o cuidado com a natureza. O que isso representa para o senhor?
Achei algo maravilhoso. Não diria que foi tardio. Estão corajosamente adotando questões mais abertas em relação à sexualidade, abuso, corrupção dentro da Igreja. Não sei se é maior agora, ou nós é que estamos olhando de forma mais profunda. Hoje é importante não apenas criticar governos e lideranças, mas exigir uma consciência por parte das pessoas. Precisamos mudar a forma de pensar e de agir. É como um beija-flor que pega uma gota e joga no incêndio. É o que fazemos aqui. Constituímos as diversas comunidades e vamos tentando viver de forma equilibrada.
Como o senhor vê a associação entre políticos conservadores e religiões como as evangélicas?
As diferentes tradições religiosas podem se manifestar de diferentes modos. Os evangélicos tiveram que se distanciar dos católicos, pois eles esperam milagre. Mas vejo que estão menos radicais nos últimos tempos. Os católicos pensam na salvação. Eles têm essa visão ligada ao cotidiano. Eu escuto notícias aqui e ali. Em um ou outro caso evangélico tenho visto posições mais abertas, atentas para aprender sobre outras religiões.
Se fosse resumir para uma criança o que é o budismo, o que diria?
O budismo é um remédio. Tem um momento em que ele é abandonado. O objetivo dele é a saúde e a lucidez. A partir de dado momento, o budismo é um peso. Eu não preciso carregar um tratamento. Eu diria: “Meu filho, seja budista, mas não seja para sempre. Se livre dele ali adiante”.
E o senhor, será budista até quando?
Eu penso assim: utilizo o budismo para ajudar as pessoas. Faço uma comparação com a situação dos vírus. Eles são hábeis, eles vão mudando, gerando resistências. Assim como os vírus, as fontes de infelicidade e de obscurecimento vão mudando. Consequentemente, temos que descobrir outras formas de ajudar. Hoje, há outros obstáculos. Temos que nos adaptar. O papa Francisco tem que falar da questão ambiental. Jesus Cristo não precisou.
O budismo diz que, para não haver sofrimento, deveríamos eliminar nossos desejos. Mas isso é da natureza humana, não? Como atingir a iluminação?
Essa perspectiva é artificial, não é o resultado final. O budismo olha o aspecto de energia. Por exemplo, quando temos o desejo por algo, nossa energia está baixa. Um objeto ou uma circunstância faz nossa energia levantar e a gente brilha. Mas aí há a insatisfação e a transitoriedade: aquilo funciona por um tempo, daqui a pouco não funciona mais. Como uma criança com um brinquedo novo. Uma característica nossa é a transmigração. Um pássaro está sempre olhando qual o próximo galho em que ele vai pousar. E quando ele chega no galho, chegou porque teve desejo, aspirou, se organizou, mas o galho perde o viço, e ele precisa esvoaçar para outro galho. Outro pássaro olha o galho vazio e quer ocupar. Não é que o galho perde o viço, mas a pessoa enxerga o viço em outro lugar. Estamos em um tempo em que a transmigração se acelera. Um sintoma na atualidade são as relações amorosas transitórias. Tudo parece ser descartável. Buda não é contra o desejo, é contra o sofrimento. Estou sempre saltando de um galho para o outro. Se fixar na meditação, também me fixo no desejo de algo, que se esgota. Então, aparentemente não tem solução. Mas tem.
Onde está o caminho do meio? Como a meditação pode ajudar nesta busca?
Na meditação, a pessoa se acalma. É mais fácil localizar aquilo que somos dentro da meditação do que dentro das coisas agitadas. Estando sempre em transição. Por exemplo, você não é o seu trabalho, você é um ser meditando. O desafio será entender: aqui não está acontecendo nada. Ainda assim, tem energia dentro de ti. Se deixar vir, tem um brilho, dentro de uma experiência simples. Essa felicidade está ali, dentro. A forma de viver muda. Em vez de saltar para os lugares para colher um pouco de felicidade passageira, tu ofereces, irradiando felicidade. A gente não medita para encontrar a felicidade: ela já está lá. Só encontramos algo que já está lá. Em vez de chegar como alguém faminto, sedento, você chega como alguém que vai oferecer algo.
Qual o papel das redes sociais nessa busca?
As redes sociais levam informações bastante valiosas para as pessoas. O budismo não tem a percepção de que o samsara, o mundo que aparece aos meus olhos, é mau. Acho até que (as redes) melhoram as relações. As coisas ficam claras, pois as várias versões dos fatos estão disponíveis e ao nosso alcance. O budismo trabalha muito com o aspecto de transparência. Trabalhamos com a realidade que se apresenta. Não tentamos convencer ninguém. Só convidamos as pessoas para observarem as coisas como elas estão postas.
Buda é pop nas revistas de decoração, nas novelas, nos programas de gastronomia. O zen-budismo é bastante comercializável. Isso é um sinal de quê?
Isso não é problema. Representa um nível de engajamento. Não acho interessante que a pessoa se sinta budista por usar alguns apetrechos. Ela precisa transformar aspectos internos. Mas se quer usar, tudo bem, com o tempo a transformação vem junto. Não adianta aderir por fora. Tem que haver mudanças internamente, tomando as decisões.
Muita gente flerta com o budismo, mas não se aprofunda na filosofia. O que o senhor acha disso?
Para o budismo, não tem problema que isso ocorra. Existem várias perspectivas da forma como o budismo traz benefício. Existe uma forma mais abrangente, inspirado no trabalho de Sua Santidade Dalai Lama. Ele tem recuado e tenta se livrar do próprio budismo, explicando a importância das tradições religiosas dentro do esforço de criar uma ética secular. Ele acha que a primeira coisa que deveríamos fazer é conviver melhor dentro deste ambiente de diversidade. A gente precisa fazer uma espécie de pacto, de como a gente pode viver melhor, cuidar uns aos outros. Temos um desafio, que é fazer essa convivência. Aparentemente é muito melhor se a gente puder viver de forma mais pacífica. Criar uma bandeira que unifique as pessoas independentemente de suas crenças ou religiões.
Quais os desafios do budismo na atualidade?
A globalização rompeu a base social que havia de substrato para o budismo no Oriente. Hoje, estamos vivendo uma sociedade igual para todos os lados, uma sociedade que está destruindo o planeta. O tipo de ambiente onde os mosteiros surgiram desapareceu, e isso afeta o budismo. O budismo tradicional no Brasil veio com os imigrantes, mas está desaparecendo, enquanto tem outra vertente que está crescendo. Considero crucial estabelecer centros que preservem a forma tradicional. Ao mesmo tempo, é necessário que exista um budismo que dialogue com a cultura do mundo. Nosso desafio é ter o budismo contemporâneo e manter preservada a cultura antiga.
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lara.ely@zerohora.com.br
Reportagem por LARA ELY
Fonte: ZH online, acesso 01/09/2015 reportagem 30/08/2015
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