quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Microscopia sociomaternal

Paulo Rabêlo*
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Quanto mais a gente estuda, parece que menos a gente sabe sobre o mundo de verdade. Ou o mundo que interessa.

É tanto tempo cultivando esse conhecimento microscópico que, se eu tivesse um filho hoje, provavelmente tudo de importante na vida ele teria de aprender com a mãe.

Cheguei a essa óbvia conclusão quando me vi sentado na cadeira do dentista que, sapiente, mostrou-me o martelo com o qual estava prestes a arrancar meu dente. Percebi que, até dia desses, eu não sabia que precisava “de verdade” ir ao dentista todo ano. E ainda hoje, careca e buchudo, eles me ensinam a escovar os dentes de novo.

Aparentemente, não sei escovar os dentes; mesmo o fazendo três ou quatro vezes ao dia. E temo não ter capacidade cognitiva para aprender.

Se o guri precisar arrancar um dente de leite em casa, serei o primeiro a desmaiar ao ver o sangue escorrendo. Banguela, chorando de dor e com sangue na camisa, ele vai ligar para o Samu achando que o pai morreu no chão da sala. E que morreu todo mijado.

Notei que nunca aprendi a amarrar os cadarços do sapato. Aprendi a fazer uma borboleta no cadarço quando criança e envelheci amarrando os sapatos assim. O cadarço nunca fica preso direito; quase todo dia preciso refazer. Aparentemente, não sei ensinar um ser humano como amarrar os próprios sapatos.

Depois de duas décadas fora do lar materno, me especializei em comprar a comida pronta ou fazer nissin miojo que nem sempre sai no ponto certo. Já quase explodi o apartamento algumas vezes por causa de produtos congelados no forno que, não sei como, viraram a noite lá dentro.

Percebi que não consigo abrir uma lata e uso o meu canhotismo como se fosse um argumento científico. Na verdade, abro qualquer lata, de qualquer tamanho, mas usando uma faca gigante de cortar carne. Não sei nem como se pega num abridor de latas.

Aliás, não sei para que existe abridor de latas se dá para furar qualquer lata em qualquer lugar do mundo e abrir com uma faca. Eu vou ensinar isso para um ser humano que, talvez, vai perder um dedo (ou dois) tentando abrir uma lata de leite condensado. Bom, pelo menos tem o exemplo do Lula que perdeu um dedo e virou presidente.

Um guri talvez queira dormir numa cama cheia de penduricalhos e ter uma colcha de super-heróis, mas até hoje não consigo entender a necessidade de se ter uma cama em casa. Muito menos, de dormir nela. Por que ele precisa dormir em cama se eu e todos meus antepassados mocorongos sobrevivemos até hoje sem uma?

Nunca me dou o direito de querer ensinar ninguém a ter bons modos à mesa, pois com que moral vou poder continuar reutilizando facas para não lavar (afinal, a gente não bota a boca na faca) e usando pratos de plástico e reutilizando também porque são caros.

Se na hora de fazer o pão de queijo com goiabada consigo sujar até mesmo o teto da sala (não me pergunte como), qual a moral de ensinar uma criatura a não sujar qualquer coisa seja lá onde for.

Ele vai querer matar as baratas e besouros que aparecem em casa. Para tal, virá procurar conhecimento marcial com o homem da casa. Acho (ou espero) que seja eu. Ainda. Mas logo eu, que sempre fui mais lento (e mais medroso) do que todos os bichos peçonhentos.

A única coisa que o guri vai aprender é a ter requintes de crueldade, borrifando veneno (de longe) e vendo a barata se contorcer no chão sem precisar fazer qualquer esforço físico. E, quando ela tentar correr, vai morrer afogada de tanto veneno sob os aplausos retumbantes de um método eficaz e científico de matar qualquer bicho pequeno que se mexa.

Mas, se a barata correr para baixo da cama (dele) antes que dê tempo de ir buscar o veneno, a gente vai voltar para o videogame até a mãe voltar do trabalho e resolver a situação como um ser humano realmente inteligente: no chinelo.

E, por falar em videogame, uma hora a mãe vai precisar mandar o guri sair de frente da TV para estudar. Com qual moral vou dizer que ela está certa quando o guri talvez seja cliente do meu armazém no Warcraft onde faço leilão de runas, gemas, espadas e machados a um precinho sempre abaixo da concorrência. E, nas horas vagas, invado a madrugada exterminando os alienígenas quando deveria estar estudando também…

Ele vai dormir, claro, mas se acordar no meio da madrugada porque teve pesadelo (com os aliens do jogo), vai achar o pai fritando três hambúrgueres com bacon para o lanche da madrugada e, no dia seguinte, a mãe não vai entender porque ele não quer comer o iogurte natural com frutas saudáveis no café da manhã.

Não tem nada disso no Lattes. Mas deveria ter.

Se chegar o dia em que o pirralha mostre qualquer interesse sobre ciência das complexidades, inviolabilidade de documentos, técnicas forenses de investigação, linguagem binária, programação neurolinguística e interface homem-máquina, talvez eu tenha alguma coisa a ensiná-lo.

Mas terá que ser psicografado, pois provavelmente já serei cinzas cremadas e jogadas na foz do Rio Tapajós. E esse conhecimento será tão atual quanto uma garrafa de Guaraná Fratelli.

Antes disso, talvez, ele queira aprender sobre a falibilidade humana e sobre interpretação dos sinais femininos, mas, até assim, será mais prudente ele aprender com a mãe. E depois me ensinar.

Não sei, desconfio que talvez as mulheres admirem todo esse cenário bucólico e pseudo-romântico. Talvez algumas mulheres consigam enxergar uma beleza nesse amplo leque de ausência de tato social e conhecimentos inúteis em termos de servitude humana.

Mas é porque elas não costumam ter um viés microscópico sobre nós. Ignoram a vertente científica e um pouco mais objetiva sobre o macho. Se eu fosse mulher, poderia até gostar de homem; mas certamente ia querer ter filhos com outra mulher.

Mesmo que a mãe fosse um ser sociável e inteligente e pudesse ensinar ao guri tudo que eu não sei, ou seja, a vida de verdade, ainda assim ela estaria esquecendo um universo de validações científicas acerca do conhecimento técnico e biológico da vítima, digo, da criança.

Pois o trombadinha, mesmo que se converta (pela mãe) a ser um lorde inglês, nunca será o deus grego que toda mãe sonha – e afirma – ter.

E já ia nascer com prazo de validade mais curto, encravado no DNA. Aos quatro anos, vai usar óculos fundo de garrafa, aos oito anos talvez não possa mais comer chocolate por causa da diabetes. Aos doze, vai perceber que já faz tempo que ele não cresce mais do que aquilo que já é, enquanto todos ao redor continuam subindo, subindo, subindo. Vai ser um tamborete de zona para o resto da vida.

Aos quinze, vai notar os cabelos se suicidando e não nascendo mais, também deixando para trás a carreira no heavy metal. Aos dezoito, vai começar a conviver com a ameaça da cardiopatia para sempre. Aos vinte, vai entender que a briga com a balança não tem fim, mas sempre tem um vencedor: a máquina.

É difícil, para não dizer impossível, enxergar a ciência das coisas e não querer enxergar a ciência nas pessoas. Deve ser por isso que existe mãe.

Bom, é verdade que pelo menos ele seria fofinho e peludo.

Tipo um coala. Um coala albino. Teria emprego garantido no eventual remake dos Gremlins em Hollywood. Também teria uma excelente e abundante vida nas florestas australianas.

Deve ser por isso que admiro a ciência nos cachorros: a gente educa com biscoitos.
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*Jornalista desde 1997, Mestre em Políticas Públicas c/ especialização em Mídia e Comunicação pela Central European University em Budapeste (2007), Mestre em International Media Innovation Management pela Deutsche Universität für Weiterbildung (Berlin University for Professional Studies) em Berlim (2015).
Fonte: Site do Autor. Acesso 09/09/2015

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