Por vezes é necessário pôr de lado "KL", de Nikolaus Wachsmann,
não porque a escrita seja pastosa – pelo contrário, está admiravelmente
escrito – mas porque
a náusea pode tornar-se insuportável.
A 1 de Janeiro de 2016, Mein Kampf entrará no domínio
público e o estado da Baviera, actual detentor dos direitos de autor do
livro, deixará de poder impedir a sua publicação na Alemanha, como tem
acontecido até agora. Inevitavelmente, há reedições a serem preparadas,
que estão, também inevitavelmente, envoltas em acesa polémica, entre os
que defendem que o livro é uma “ferramenta académica” ou que não pode
apagar-se a história e os que receiam as influências perniciosas que o
livro possa exercer, para mais em altura de recrudescimento de
sentimentos anti-semitas pela Europa fora.
Uma solução de compromisso poderia ser a obrigatoriedade de comercializar Mein Kampf num “pacote” com KL: A História dos Campos de Concentração Nazis,
de Nikolaus Wachsmann, que a D. Quixote acaba de editar em Portugal.
Se, 70 anos após a morte de Hitler, ainda restar veneno em Mein Kampf
e ainda houver espíritos suficientemente simplórios ou retorcidos para
serem enfeitiçados por tão indigente amálgama de atoardas, incitamentos
ao ódio, auto-glorificação, delírios megalómanos e distorções malévolas,
KL será o antídoto.
Por vezes, há livros que são descritos como “um murro no estômago”. KL
não é um murro no estômago, é uma saraivada de murros, incessante,
implacável, que se estende, sem esmorecimento, por 634 páginas (mais 220
de apêndices, notas, bibliografia e índice remissivo). KL (era esta a forma como eram designados, na linguagem quotidiana e nos documentos oficiais, os Konzentrationslager
= campos de concentração) sintetiza uma colossal quantidade de
informação sobre a rede concentracionária nazi e apresenta-a de forma
neutra, objectiva e sobrenaturalmente clara, desfazendo algumas
generalizações, simplificações e preconceitos que se foram enraizando
com o passar dos anos.
Importa realçar que o assunto do livro não é
o Holocausto: Wachsmann foca-se nos campos de concentração, deixando de
fora os campos de extermínio e os campos de trabalho, exceptuando,
claro, casos como o do complexo de Auschwitz-Birkenau, onde as três
“valências” coexistiam.
KL já seria um trabalho admirável se fosse “apenas” um
retrato minucioso da evolução da máquina concentracionária nazi entre
1933 (data da entrada em funcionamento de Dachau, poucas semanas depois
da tomada do poder) e 1945. Mas Wachsmann nunca deixa que o livro se
resuma a números e abstracções e a cada evento, prática ou tendência
atribui um rosto, seja ele de vítima ou de carrasco.
Assim, está cá o miúdo de 13 anos acabado de chegar ao campo de
Ebensee que foi assassinado por um grupo de prisioneiros apenas para lhe
ficarem com o pão;
Dyonis Lenard, um judeu preso em Majdanek,
onde a água para os prisioneiros era tão escassa que ele se lavava com o
“café” (ou um líquido quente a que era dado tal nome) distribuído aos
presos pela manhã;
Gerhard Pohl, uma criança de três anos, cujo
falecimento a 10 de Maio de 1942, em Auschwitz, foi atribuído, na
certidão de óbito emitida pelos médicos da SS, a “velhice” (a burocracia
não permitia que nenhum dos presos registados pudesse ser “abatido” sem
uma justificação, sendo a causa de morte escolhida aleatoriamente de um
catálogo de doenças);
Erko Hejblum, um membro do Sonderkommando
(as unidades de judeus que eram poupados, temporariamente, para receber
os seus iguais, conduzi-los às câmaras de gás e “processar” os
cadáveres) de Birkenau, que após passar muitos dias, no Outono de 1942, a
desenterrar cadáveres (mais de 100.000) com as mãos nuas, começou a
enlouquecer;
um velho judeu que, no campo de Majdanek, “tropeçou e roçou ao
de leve nas calças de um SS que ia a passar” e que, de imediato, o matou
com um tiro;
o adolescente violado durante a noite por um Kapo
que, para se assegurar de que não seria denunciado pela sua vítima, lhe
roubou a boina – uma vez que a sua falta desencadearia severas punições
pelos SS, o rapaz não viu outra solução senão roubar a boina de um
companheiro de barracão, que seria executado na manhã seguinte por tão
grave falha na indumentária regulamentar;
o jovem judeu, que face
ao pânico que tomou conta do seu grupo à entrada da câmara de gás quando
correu o rumor do destino que os esperava, subiu a um banco e tentou
tranquilizar todos, garantindo que não iriam morrer, “porque um massacre
indiscriminado de inocentes, de modo tão bárbaro, não podia acontecer
em lado nenhum do mundo”;
a prisioneira que caíra nas boas graças
das SS e que estava encarregada de passear o galgo do comandante do
campo, o que fazia, segundo o testemunho de outra reclusa, como se
estivesse “numa rua chique de Londres”;
Ján Weis, um judeu
eslovaco cujo trabalho na enfermaria do campo passou por auxiliar o
médico SS a assassinar doentes com uma injecção letal e descobriu que no
grupo de condenados que entrou na enfermaria estava o seu próprio pai;
E também o cabo Adam Hradil, motorista de um dos camiões que
transportava os velhos e doentes entre o cais de desembarque de
Auschwitz e as câmaras de gás, que admitiu mais tarde que o trabalho
“não tinha muita graça”, mas que apreciava a ração extra de aguardente
que a tarefa lhe valia (o bónus pelas “operações especiais” incluía
também “cinco cigarros, 100 gramas de pão e salsichas”);
Martin
Knittler, responsável por um sector do campo de Sachsenhausen, que
quando foi informado, no final de um dia de Novembro de 1941, da morte
de nove trabalhadores-escravos, achou pouco para um dia de trabalho e
obrigou os prisioneiros a ficar de pé em frente ao barracão durante
horas pela noite dentro (de manhã 37 deles estavam mortos);
o
comandante do campo de Kovno, na Lituânia, que, na Primavera de 1944,
antes de assassinares milhares de rapazes e raparigas ali internados,
organizou uma festa para crianças;
Amon Göth, comandante do campo
de Plaszow, que permitia que os parcos mantimentos destinados aos seus
presos fossem trocados pelos guardas no mercado negro e costumava
desviar a carne para os seus cães;
Rudolf Höss, que apesar do
stress decorrente das responsabilidades como comandante de Auschwitz
admitia que ele e a família tinham aí vivido tempos felizes; a poucos
metros do inferno, Frau Höss, tinha “um paraíso de flores”, cuidadas por
um preso polaco, e um sumptuoso guarda-roupa, “cheio de vestidos e
sapatos de mulheres assassinadas”;
a esposa de Amon Göth, que,
décadas mais tarde, não lamentava os crimes cometidos mas sim “os tempos
maravilhosos” passados no campo – “O meu Göth era o rei e eu era a
rainha. Quem não teria querido trocar de lugar connosco?”;
os
médicos SS que ficavam com cãibras nas mãos de tanto assinarem certidões
de óbito, de forma que encomendaram carimbos com as suas assinaturas;
o
Dr. Johann Paul Kremer, professor de anatomia na Universidade de
Münster, destacado para Auschwitz no Verão de 1942, que embora não
apreciasse o local, tirava partido dos passeios de bicicleta e das
lautas refeições servidas na messe dos oficiais SS (que descreve
minuciosamente nas suas cartas), pilhava despudoradamente os armazéns
com objectos pessoais apreendidos aos judeus exterminados e
regozijava-se por poder empreender os seus estudos de anatomia com
“material praticamente vivo de fígado e baço humanos”;
o
segundo-tenente Dr. Sigmund Rascher (“um charlatão” na opinião do
clínico principal das SS), a quem Himmler não só deu carta branca para
as mais disparatadas, cruéis e inúteis experiências médicas como até
sugeriu experiências igualmente imbecis e vãs;
o Dr. Helmut
Vetter, que eufórico por poder testar os sulfamidas da Bayer (a empresa
para que trabalhava) em cobaias humanas fornecidas por Auschwitz,
afirmava “sentir-se na paraíso”;
o tristemente célebre Dr. Josef
Mengele, elogiado pelo médico-chefe de Auschwitz pela dedicação e pelo
“contributo valioso com os seus trabalhos de ciência antropológica”, que
na verdade mais não eram do que tortura sistemática de presos – e em
particular de gémeos com idades entre dois e 16 anos – em
pseudo-experiências grotescas;
Erich Muhlsfelst, chefe do crematório de Majdanek, cuja ideia de galanteio era acenar às guardas SS com bocados de corpos;
o
Reichsführer SS Himmler proclamando, perante generais da Wehrmacht, em
1944, que os prisioneiros dos seus campos” viviam melhor do que muitos
trabalhadores da Inglaterra e da América”.
Em contrapartida, são parcos os exemplos nestas páginas que contribuam para nos fazer crer na bondade inata da natureza humana.
Apesar
de tudo, houve uma mulher alemã que numa rua de Osnabrück, em 1942, ao
ver um SS espancar um preso que desmaiara, se interpôs entre ambos e deu
um raspanete ao SS;
um grupo de reclusas checas em Ravensbrück
que, quando as judias foram punidas com um corte de rações durante um
mês, lhes entregaram clandestinamente parte da sua ração;
um preso do Sonderkommando que, em Auschwitz, arriscou a vida para obter provas fotográficas da matança em massa;
o
padre franciscano Maksymilian Kolbe, que, em Auschwitz, se ofereceu
para morrer no lugar de um preso condenado pelos SS a morrer de fome,
como represália pela fuga de um prisioneiro (os guardas aceitaram a
troca, mas como a morte de Kolbe pela fome tardava, deram-lhe uma
injecção letal);
os Kapos de Buchenwald que tomaram sob a sua
protecção centenas de crianças, entre as quais esteve Stefan Jerzy
Zweig, um rapazito de quatro anos de idade, cujo nome surgiu na lista de
preso a enviar para o extermínio em Auschwitz-Birkenau, mas que os
Kapos trataram de apagar (mas aqui manifesta-se a crudelíssima lei de
ferro dos campos: melhorar a situação de alguém significava quase
inevitavelmente o mal de outrém e uma vez que a lista de prisioneiros a
deportar não podia ter um nome a menos, os Kapos tiveram de escolher
alguém para tomar o lugar de Stefan e quem foi para a câmara de gás foi
Willy Blum, um rapaz cigano de 16 anos).
Há uma gritante quase-ausência no longo e tenebroso cortejo de KL: a do autor de Mein Kampf,
que, em última análise, foi o principal ideólogo e promotor dos campos
de concentração. Não se trata de uma lacuna de Wachsmann: Hitler
raramente interveio directamente no assunto. A sua forma de actuação era
bem diversa, como explica Ian Kershaw na sua monumental biografia do
ditador e em particular no capítulo “Trabalhar em prol de Hitler”.
Ao
contrário do que possa pensar-se, a governação da Alemanha nazi estava
longe de ser uma máquina perfeitamente afinada, pois Hitler assumira uma
liderança pessoal e absolutista, fragmentando e distorcendo a máquina
administrativa e dando azo a uma caótica disputa entre organismos cujas
competências se sobrepunham e com diversos graus de dependência em
relação à vontade do Führer.
Escreve Kershaw que “a forma de
governação personalizada de Hitler incentivava o surgimento de
iniciativas vindas de baixo, que mereceriam o seu apoio desde que se
enquadrassem nas amplas balizas por ele definidas. Tal promoveu uma
competição feroz a todos os níveis do regime, entre organismos rivais e
entre indivíduos no interior desses organismos. […] No âmbito do
“trabalho em prol do Führer, foram tomadas medidas, criadas pressões e
preparada legislação – sempre de forma a que se conformassem com o que
se supunha serem os objectivos de Hitler e sem que o ditador tivesse
necessariamente de as impor”.
Wachsmann, ao conjugar um meticuloso e abrangente trabalho de
pesquisa com um vasto leque de testemunhos pessoais, logrou uma obra de
admirável equilíbrio, que permite a visão “panóptica” sem que se
esqueça, em momento algum, o sofrimento humano por trás das
estatísticas, das directivas e dos relatórios. KL torna-se assim numa obra tão indispensável à compreensão deste momento negro da história da humanidade como Se Isto É um Homem,
de Primo Levi. E tal como acontece com o livro de Levi, dificilmente
algum leitor poderá emergir da leitura destas páginas incólume.
No
que respeita à edição portuguesa é justo realçar o mérito da tradução
de Miguel Mata, que tem vindo a distinguir-se no domínio da história do
século XX com um trabalho de grande rigor e profundo conhecimento dos
assuntos, complementando o texto com notas oportunas e eruditas.
KL termina com o julgamento dos carrascos e é sem surpresa
que se percebe que os arrependimentos ou os exames de consciência foram
raros. Alguns nem sequer assumiram ter exercido cargos de
responsabilidade: Otto Moll insistiu em que em trabalhara em Auschwitz
como jardineiro (fora o director dos crematório) e negou que tivesse
comandado um esquadrão da morte móvel – “Não disparei contra ninguém. Eu
era um soldado alemão, não era um assassino”.
Martin Weiss, que
foi comandante de Dachau (depois de ter coordenado massacres de judeus
na Lituânia), considerou que “Dachau era um bom campo”. Josef Kramer,
que foi comandante de Bergen-Belsen, garantiu nunca ter recebido queixa
alguma dos presos. O Dr. Claus Schilling, sumidade em medicina tropical,
para cuja demanda (não muito esclarecida) de uma vacina contra a
malária foram requisitadas 1100 cobaias humanas, não só não mostrou
arrependimento como solicitou ao tribunal que lhe permitisse prosseguir
as suas investigações “para bem da ciência e da humanidade”.
O Dr.
Wirths, médico-chefe de Auschwitz, admitiu que o gaseamento de judeus
era “uma solução desagradável”, mas “aceitável” como resposta à doença e
sobrelotação. Oswald Pohl, que liderou a WVHA, organismo responsável
pela administração dos campos, alegou que serviu “como um soldado
profissional”. Uma mulher que fora chefe de bunker no campo feminino de
Ravensbrück alegou que fora apenas “uma pequena engrenagem inanimada de
uma máquina”.
É verdade que nem todos foram decisores e comandantes de campo e
alguns se limitaram a cumprir ordens, mas se muitas “pequenas
engrenagens inanimadas” da máquina se recusarem a fazer coisas
absolutamente contrárias à ética e à dignidade, talvez a máquina se
engasgue e até emperre. E disso dá testemunho outro livro sobre campos
de concentração nazis publicado há uns meses em Portugal pela Jacarandá:
As Primeiras Vítimas de Hitler: Em Busca da Justiça, de
Timothy Ryback, foca-se nos primeiros tempos do primeiro campo de
prisioneiros, Dachau. Mostra como, na Alemanha de 1933, o terror e a
brutalidade foram ganhando terreno de forma progressiva e insidiosa, à
custa do Estado de direito, e acompanha a luta de Josef Hartinger, o
destemido procurador-adjunto do Estado da Baviera, que, pondo em risco a
carreira, se recusou a acreditar que as mortes dos primeiros presos de
Dachau tinham resultado de “suicídios” ou de “tentativas de fuga”
frustradas pelos guardas, como pretendiam os relatórios oficiais
grosseiramente forjados, e chegou a conceber um audacioso plano para
“prender por homicídio o comandante do campo, Hilmar Wäckerle, e
expulsar as unidades SS do sistema de campos de concentração”.
Hitler
tomara o poder semanas antes e ainda não se assenhorara de todo o
aparelho de Estado, pelo que Hartinger ainda dispôs de alguma margem de
manobra. Entre Abril e Junho de 1933, contando apenas com o apoio do
médico-legista Moritz Flamm, fez frente à deriva totalitária que ganhava
ímpeto, mas a investigação foi entravada por manobras burocráticas e
pelos seus superiores e acabaria por ser arquivada por ordem de Hitler.
Dachau e os restantes campos de concentração ficariam completamente sob o
controlo da SS e tomariam a tenebrosa rota descrita em KL.
Em 1984, após um silêncio de décadas, Hartinger, à beira de cumprir
90 anos, evocaria assim o seu combate contra a subida da maré
totalitária em 1933: “O facto de não termos poder não significa que não
tenhamos coragem e, em última análise, que não tenhamos carácter. Não
devemos procurar maneira de fazer a diferença, mesmo em circunstâncias
tão desesperadas?”
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