Para
o filósofo Luc Ferry, se ficamos tão chocados com casos como o da
menina Isabella, é porque amar a família é uma novidade radical na nossa
história
Rita Loiola
O
filósofo Luc Ferry é o oposto do que geralmente se associa a um
intelectual francês. Seus livros são fáceis de ler – estão sempre na
lista dos 10 mais vendidos na França. Os títulos lembram a auto-ajuda
(Aprender a Viver, O Que É uma Vida Bem-Sucedida ou Famílias, Amo
Vocês), mas tratam apenas de questões-chave da história da filosofia.
“Minha questão é saber como o ser humano pode viver melhor, e isso só a
filosofia é capaz de responder”, diz. Além de escrever best sellers, Luc
Ferry milita na direita francesa, ao contrário de muitos dos seus
colegas intelectuais. Membro do atual governo do presidente Nicolas
Sarkozy, ele era ministro da Educação em 2004, quando a França criou
polêmica ao proibir que as crianças usassem símbolos religiosos na
escola – lei que afetou sobretudo jovens muçulmanas que usavam véu. Ele
também não é um intelectual pessimista, mas um entusiasta da maneira de
viver e pensar do Ocidente. Se o Brasil e o mundo ficam escandalizados
com a morte da menina Isabella ou o caso do austríaco que praticou
incesto com a filha durante 28 anos, Ferry diz que nunca amamos tanto
nossa família. Numa tarde quente de primavera em Paris, o filósofo
explicou por que o amor à família é a novidade na história que define o
mundo de hoje.
No
livro Famílias, Amo Vocês, lançado este mês no Brasil, você diz que os
pais nunca amaram tanto os filhos. No entanto, estamos todos chocados
com o caso de uma menina que foi jogada pela janela do 6º andar. E, na
Áustria, veio à tona um caso de incesto que durou 28 anos. Esses
episódios não o contradizem?
Não.
Já ouvi falar dezenas de vezes desse caso da garota Isabella, e estamos
todos chocados, tanto quanto com o caso de incesto da Áustria. O
importante é que, hoje, esses episódios deixam a maior parte da
população escandalizada. Analisando historicamente, percebemos que nem
sempre as pessoas ficaram chocadas com histórias como essas. Até o
século 18, antes do nascimento da família moderna, cerca de 30% das
crianças eram abandonadas. No norte da França, as mortes chegavam a 90%
no primeiro ano de vida. Na Idade Média, a morte de uma criança era
menos importante que a perda de um cavalo. Existiam diferenças em
relação ao primogênito, mas, em geral, as crianças simplesmente eram
abandonadas para morrer. A situação mudou completamente. E, no futuro, a
família deve se tornar ainda mais importante.
Por quê?
Porque
o ser humano é uma das últimas coisas sagradas hoje em dia. Na
história, o sagrado (aquilo pelo qual somos capazes de arriscar nossa
vida) mudou muito. Os europeus já morreram por 3 grandes motivos: Deus, a
pátria e a revolução. Nos últimos séculos, houve mortes maciças em
guerras de religião, nacionalistas e guerras revolucionárias. Esses
motivos desapareceram. Os jovens ocidentais de hoje não são capazes de
morrer nem pela pátria, nem por Deus, nem pela revolução. Acabou.
Mas ainda existe quem morreria por um ideal, como os homens-bomba ou os terroristas bascos. Não?
Existem
os extremismos políticos, mas acredito que, entre os ocidentais, nem
mesmo os 5% de extrema direita ou esquerda morreriam por um ideal. No
entanto, os únicos seres pelos quais seríamos capazes de arriscar nossa
vida são os outros seres humanos – nossos filhos, nossos amigos ou mesmo
pessoas que passam por situações graves de miséria, como os famintos da
África e os movimentos humanitários que tentam salvá-los. O sagrado não
desapareceu, ele só mudou de lugar e se encarnou na humanidade.
Passamos da transcendência vertical – Deus, pátria, as grandes utopias –
para a transcendência horizontal – os homens. Na minha opinião,
trata-se de uma grande mudança. É uma maravilha não morrer por motivos
estúpidos, e sim para salvar outros seres humanos. Muita gente acha que o
fim das utopias é uma tragédia. Para mim, é uma coisa formidável.
Como o fim dos ideais influencia a política hoje?
No
Ocidente, faz com que a política, em vez de ser um fim em si mesma,
seja um auxílio para a vida privada. Hoje em dia, as pessoas pedem que
nós, políticos, sejamos um instrumento do desenvolvimento da família.
Não trabalhamos a serviço da glória do país ou da revolução, mas a
serviço dos cidadãos. É uma mudança de foco imensa. Com ela, surgem
problemas novos, como a preocupação com as gerações futuras. Vem daí o
interesse pela ecologia e também pela dívida pública – questões para
resolvermos a longo prazo. Temos que dar conta desses problemas não para
contribuir para a grandeza do país, mas porque não queremos deixar um
mundo pior para nossos filhos.
Essa preocupação com a família é um dos aspectos do que você chama de “novo humanismo” do mundo moderno ou “sabedoria do amor”?
Exatamente.
O mundo de hoje é marcado por relações amorosas que têm uma origem
muito recente. Antes do capitalismo, as pessoas se casavam à força e
nunca por amor. O casamento tinha duas funções: manter a linhagem
familiar e tocar a vida rural – fazer a roça, construir cercas para os
animais, preparar a comida e até fazer as próprias roupas. Com o
capitalismo, surge o povo assalariado e o mercado de trabalho. As
mulheres saem da roça para trabalhar nas cidades, vão ser operárias,
domésticas em casas burguesas e se descobrem como indivíduos. Largam a
bolha em que viviam e descobrem duas liberdades: o anonimato – ninguém
mais as vigia – e o salário, um pouco de dinheiro que significa a
autonomia material. Coloque-se no lugar dessa moça que escapa do olhar
da família e do padre da vila: é uma liberdade formidável! Essa mulher
passa a se recusar a ser casada à força. Ela vai querer “se” casar – e
com alguém de quem ela goste. Surge assim o casamento por amor, e desse
casamento vem o amor pelos filhos e depois a sacralização das pessoas.
Foi assim que o amor familiar virou um grande traço que nos define hoje
em dia.
Então é o amor que dá sentido à vida hoje?
Sim.
O amor é uma das poucas coisas absolutas, indiscutíveis hoje em dia. E a
única coisa capaz de dar sentido à vida é o absoluto. Antigamente, o
valor absoluto era uma coisa transcendente, ou seja, superior a nós,
como Deus e a eternidade. O valor absoluto caía do céu. Mas agora ele
está em nós, o que eu chamo de uma “transcendência na imanência”. É mais
ou menos como quando alguém se apaixona: ele descobre a transcendência
do outro, mas consciente de que o sentimento foi criado dentro de si. A
verdade não é mais descoberta hoje sob argumentos autoritários,
superiores, mas na sua parte mais íntima – o coração.
Alguns
psicólogos dizem que estamos obcecados pela felicidade e pela
realização pessoal. Essa busca por felicidade do mundo moderno pode nos
levar a mais decontentamento?
Bem,
você gostaria de voltar aos séculos passados onde essa felicidade não
existia? Se não gostaria, é preciso aceitar que a vida moderna,
democrática e livre tem um custo, que é fazer e até mesmo inventar a
vida sozinho, arranjar um sentido para a própria vida. Certamente não
devemos pensar que a vida deve ser sempre feliz e despreocupada. Pessoas
que tentam viver como se a vida pudesse ter nenhum sofrimento lembram
um animal – digamos, um coelho – que vive sem imaginar que há um caçador
por perto para estragar a festa. Kant, o filósofo alemão, diz que se a
Providência quisesse que fôssemos felizes não teria nos dado a
inteligência. Nunca conseguiremos ter uma vida totalmente despreocupada.
O ser humano tem problemas, tem medos que o fazem diferente de um
coelho que brinca inocentemente.
Os
títulos de seus últimos livros parecem tirados de manuais de
auto-ajuda, mas falam somente sobre questões filosóficas cruciais. A
filosofia pode nos ajudar a viver melhor?
Sim.
Quando a filosofia surgiu, na Grécia, era uma “aprendizagem sobre a
vida”, e não um discurso chato, como hoje. Naquela época, as escolas de
filosofia passavam como lição de casa exercícios para os alunos viverem
melhor e mais livres. Por isso, um dos meus livros têm o título Aprender
a Viver, que é uma frase de Sêneca, o filósofo estóico grego. Só depois
da vitória do cristianismo sobre a cultura grega que a filosofia vira
questão religiosa e acadêmica. Quando a religião cristã se sobrepõe à
filosofia, principalmente a partir da Idade Média, e toma para si a
questão da “aprendizagem da vida” ou do “saber viver”, a filosofia fica
esvaziada de seu objetivo principal e se transforma em um estudo
abstrato e puramente teórico. Apesar de a vida na Grécia e no século 21
serem bem diferentes, os problemas do ser humano são parecidos. Como os
gregos, nós hoje achamos que uma vida mortal bem-sucedida é melhor que
ter uma imortalidade fracassada, uma vida infinita e sem sentido.
Buscamos uma vida boa para quem aceita lucidamente a morte sem a ajuda
de uma força superior.
Mas atualmente ajudar a viver melhor não é papel da psicologia?
O
projeto da filosofia e da psicologia é igual – salvar o ser humano dos
seus medos. Mas os caminhos são bem diferentes. Acho que a psicologia
nos diz “como” e a filosofia responde “por que”. A psicologia acalma e a
filosofia mostra o sentido.
A escola e a religião
Na
breve passagem de Luc Ferry pela política,como ministro da Educação,
entre 2002 e 2004, seu ato mais polêmico foi proibir que os alunos
usassem símbolos religiosos nas escolas. A lei valia para todas as
religiões, mas provocou a ira de muçulmanos residentes na França que
obrigam as filhas a usar lenços na cabeça. Os críticos afirmaram que a
“lei do véu” era um atentado à livre expressão religiosa. Já quem apoiou
a proibição a considerou uma proteção aos direitos humanos do Ocidente.
Para Luc Ferry, o fato por trás da polêmica do véu é a ausência de
deveres na sociedade. “O homem de hoje está convencido de que tem muitos
direitos, mas é inconsciente de seus deveres. Isso fica bem visível no
sistema educacional. Se a escola é laica, não há por que utilizar
símbolos religiosos ostensivos”, diz ele. Mas o Estado laico não permite
liberdade religiosa? Ferry prefere fugir dessa pergunta e explicar o
conflito de etnias da França. “Temos em nosso território a comunidade
muçulmana mais importante da Europa e o 3º maior grupo judeu do mundo
(depois de Israel e dos EUA). Depois da 2ª Intifada, em 2001, as
crianças das duas comunidades começaram a brigar. Houve, entre 2001 e
2004, um aumento de 200% de ações anti-semitas na França. O governo
decidiu, então, proibir não os símbolos religiosos discretos, mas os
agressivos, militantes”, diz ele.
Luc Ferry
• Tem 57 anos e 3 filhos.
• Preside o Conselho de Análises da Sociedade, órgão ligado à Presidência da França.
• Gosta de jogar tênis e viajar. No ano passado, visitou o Brasil e ficou fascinado pela cidade de Salvador (BA).
•
Seu escritório se destaca pela bagunça: a mesa do computador e a da
sala de reuniões são repletas de livros e folhas espalhadas.
Fonte: http://dimitriganzelevitch.blogspot.com.br/2015/09/entrevista-com-luc-ferry.html
Imagem da Internet
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