“Oh, você também ama esta música? Então muitos pecados lhe serão perdoados!” — Nietzsche —”Conversação sobre a Música”, Aurora, 255.
Existe um pensador contemporâneo, de
textos corrosivos e embebidos de um ceticismo exaltado, que vê na música
a ocasião para uma temporária “clareira” em seus anátemas de beleza
sombria. Refiro-me ao romeno E. M. Cioran em cujos aforismos
encontramos, de maneira dispersa mas insistente, a relação entre música e
filosofia que o aproxima de Schopenhauer e Nietzsche.
Na verdade, ninguém mais indicado para
nos introduzir na encruzilhada música/filosofia do que Nietzsche que,
numa carta a Peter Gast, dizia: “a vida sem música é apenas um erro, um
trabalho fatigante, um exílio”. Na carta, referia-se também aos efeitos
salutares de uma certa música, Carmen de Bizet, sobre sua alma ávida de
“limpidez” e “alegria serena”. Carmen, como diria depois em O Caso Wagner,
tornava-o “mais filósofo, melhor filósofo”. Isto quer dizer que a
música, ou uma certa música, pode constituir uma via para a sabedoria,
para uma experiência de encontro entre o instante e a plenitude.
O prestígio da música entre os filósofos
tem uma história antiga. O neo-pitagórico Jâmblico (250-330) definia a
purificação como “uma medicina que se exerce pela música”. Na República,
Platão, embora temeroso em relação aos efeitos desmoralizantes da
“embriaguez musical”, reconhece que ela “penetra no interior da alma” e
procura uma música de valor moral e edificante para a Pólis. Encontra-a
nos modos chamados dórico e frígio, escalas austeras pelas quais a
música se torna um exercício de exaltação cívica e moral. O grande
perigo da música, para Platão, seria o de se tornar “a voz das Sereias”
que desvia Ulisses, retardando a odisséia do homem com um canto
enganador, uma sedução que leve ao desregramento e ao extravio. Ela
deve, ao contrário, imitar uma ordem anterior ao sensível; ser uma
transposição da ordem cósmica ao nível da sensibilidade.
Plotino acreditava que a música é de um
outro mundo, que seu encantamento fala da harmonia inefável, indício de
um paradigma transcendente. S. Agostinho a considerava expressão de um
“canto interior”, de uma vibração íntima exprimindo a nostalgia de nossa
origem divina. Sua obra De Musica, um diálogo no estilo platônico, é esta visão da arte musical como reveladora da divindade em nós.
Entre os modernos, Hegel, na sua
Estética, transforma a música numa aparição do Espírito, numa abstração
onde algo fala, algo se expressa, mas nunca a própria música, esta
“música inocente (unschuldige Musik) que pensa exclusivamente em si, só acredita em si, e esqueceu o mundo em benefício de si”.[1]
É com Schopenhauer, e sua paródia da fórmula leibniziana da música como
“exercício aritmético oculto”, que a música encontra uma função vital.
Metafísica se quiserem, mas vital. Com ele, esta linguagem à parte
torna-se demonstração da vida, exibição da existência: “O que é a vida? —
Para esta questão (…) a música também fornece sua resposta, e mais
profunda mesmo que todas as outras, pois, numa língua imediatamente
inteligível, embora intraduzível na linguagem da razão, exprime a
essência íntima de toda a vida e de toda a existência”.[2]
A música não expressa nenhum outro mundo,
ela encanta e, enquanto dura, revela — como um oásis — a voz que põe em
surdina o que Vladimir Jankélévitch chama de “tagarelices vãs”.[3]
Mescla de sons e silêncios penetra no tempo da realidade
cotidiana, impõe seu tempo próprio, sua duração soberana e,
inocentemente, como um “silêncio audível”, “esquece o mundo em benefício
de si”.
Em Lacrimi şi Sfinţi, texto de
Cioran publicado em 1937, a temática da música está misturada a uma
crise religiosa da qual o autor só saiu, nas obras seguintes, para
abraçar uma “espiritualidade ateísta” ou uma espécie de budismo laico
onde o Nada seria a razão de suas preces: “só os êxtases sonoros me dão
uma sensação de imortalidade”. A música (Bach) lhe parece “geradora de
divindade” e o som do órgão “uma cosmogonia”. Esta associação intrínseca
entre música e mística é melhor expressa quando afirma: “a música é a
emanação final do universo, assim como Deus a emanação última da
música”. Ironia nostálgica a de Cioran quando, nos Silogismos da Amargura,
diz que “sem Bach, a teologia seria desprovida de objeto… o nada
peremptório” ou “se existe alguém que deve tudo a Bach, este alguém é
Deus”. Último reduto do sagrado, ou do supremo como gosta de dizer, a
música permanece humana, alojada neste mundo e “só existe enquanto dura a
audição, assim como Deus enquanto dura o êxtase”.[4]
Mas ela é estado particular, e mesmo um
cético que pretende viver sem se deixar imobilizar pelas crenças que
sustentam a vida, reconhece-lhe o poder: “fora da música, tudo é
mentira, mesmo a solidão, mesmo o êxtase”.[5]
Tal é o privilégio do “fantasma sonoro”, cujo caráter impalpável e
inefável só faz aumentar-lhe a influência, a potência encantatória.
Em sua primeira obra escrita em francês, Breviário de Decomposição
(1949), Cioran demarcou sua destrutiva atividade de cético de sua
aceitação da ilusão musical, “a fusão que faz esquecer todas as outras”.[6]
Em um texto esclarecedor intitulado
“Música e Ceticismo”, escreve: “renunciei a buscar a Dúvida na música;
ela não poderia florescer lá. Ignorando a ironia, ela não procede das
malícias do intelecto, mas das nuanças suaves ou veementes da
Ingenuidade — tolice do sublime, irreflexão do infinito…”.
Cioran sempre considerou sua atividade
intelectual como “um exercício de desfascinação”. O ceticismo de seus
livros quer revelar a incurável “pobreza” e “insignificância” da
existência. Sabe que o fanatismo habita toda idéia animada pelo homem,
este “idólatra por instinto”. A existência e sua “imunda fragilidade” é
recoberta por crenças cujo fundo inconsistente um espírito lúcido deve
denunciar. Apaixonado pelos místicos mas incapaz de fé, Cioran encontra
na música, “ficção infinitamente real”, um absoluto onde vê transcrita
“a arquitetura de nossas fragilidades”.
Sua adoração por Bach, compositor que
traduz “a vibração interior de Deus”, revela como, dispensando a crença
em Deus, não dispensou o desejo de se perder no tempo incólume da
música, a qual admira como “disciplina da dissolução”, última (e única)
forma de experimentar o vazio pleno da ausência de divindade.
Já que “a arte suprema e o ser supremo dependem inteiramente de nós”,[7]
Cioran parece amar na música esta positividade temporal exaustiva que
contrasta com a negatividade limitada do pensamento e da filosofia: “só a
música nos dá respostas definitivas”,[8]
só ela nos permite “apalpar o tempo” e, diríamos, sugerir o estado
considerado perfeito para Cioran: a “pura possibilidade”, “a época em
que não tínhamos nome”, o “êxtase anônimo”.[9]
Assim como Nietzsche, ele sabe que a música é “imprópria ao diálogo”
mas que, por isso mesmo, proporciona uma comunhão imediata: “Só a música
é capaz de criar uma cumplicidade indestrutível entre dois seres”.[10]
Seu último livro, Aveux et Anathèmes
(1987), traz revelações importantes no tocante à relação entre
filosofia e música. Se o pensador cético busca a desfascinação, a música
pode contestá-lo: “Em Saint-Séverin escutando, ao órgão, A Arte da Fuga,
eu me dizia e redizia: ‘Eis a refutação de todos os meus anátemas’.”
Refutação não discursiva bem entendido, no que apresenta uma via de
acesso àquela “plenitude sem conteúdo”, o que nos restou do Deus
desaparecido.
Para este nostálgico de um “paraíso
anônimo”, a música certa não poderia ser a alegria límpida de um
Offenbach ou a sensualidade da Carmen louvada por Nietzsche. Sua aspiração ao Nada, ao “encanto estéril da monotonia” iriam conduzi-lo a Brahms, ao que chamou, nos Silogismos da Amargura,
de “geometria de outonos, álcool de conceitos, embriaguez metafísica”.
Este espírito noturno, mas nem por isso menos arrebatado, considera que
“só o que incita ao desfalecimento merece ser ouvido”.[11]
Se, para Nietzsche, a vida sem música
seria “apenas um erro”, para Cioran a música não significa a verdade do
Cosmos ou a expressão de uma harmonia matemática ou íntima entre o mundo
e o homem. “Charlatanismo inefável”, ela não aponta para nenhum além
misterioso. Dominadora, impositiva, “inocente” como queria Nietzsche, a
música parece ser aquele contraponto ao ceticismo em que “não há nada a
compreender, nada a concluir, e que, sem palavras, nos fala de nosso
destino”.[12]
[1] Friedrich Nietzsche – Morgenroete, 255
[2] Arthur Schopenhauer; Die Welt ais Wille und Vorstellung, “Ergaenzungen zum Dritten Buch“, capítulo 34.
[3] Vladimir Jankélévitch – La Musique et l’Ineffable, capítulo 4.
[4] E. M. Cioran – Aveux et Anathèmes.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] Idem.
[8] E. M. Cioran – Des larmes et des Saints (tradução francesa do original romeno Lacrimi şi Sfinţi)
[9] E. M. Cioran – De l’Inconvénient d’Être Né.
[10] E. M. Cioran – Aveux et Anathèmes.
[11] Idem.
[12] Vladimir Jankélévitch – La Musique et l’Ineffable.
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15 de setembro de 2015
Fonte: https://emcioranbr.wordpress.com/2015/09/15/musica-e-ceticismo-jtbrum/
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