A capa da edição da Planeta
Milton Ribeiro
Vim do inferno, o que criou nova forma de conviver com a vida; e, pela mesma razão, uma nova forma de romance.
Dyonelio Machado
— Mas por que seus livros estão sendo tão procurados e estudados agora? — perguntou a Dyonelio um leitor no final dos anos 70.
O escritor, que procurava um livro num sebo da Riachuelo, respondeu:
— Foi porque eu morri. Alguns escritores
são reconhecidos só depois de mortos. Há vários tipos de mortes. Uma
delas me pegou, fazer o quê?
— Uma boa morte, pelo visto.
— Meu filho, não existe morte boa.
Os Ratos, de Dyonelio Machado, completa 80 anos em 2015. O
pequeno romance é um dos mais importantes da literatura brasileira. A
história se passa durante um dia, são 24 horas de completa angústia para
o personagem Naziazeno Barbosa em sua preocupação sobre como arranjar
dinheiro para quitar uma dívida com o leiteiro.
O título Os Ratos é uma referência ao pesadelo do
protagonista da história que, depois de ter conseguido o dinheiro para
saldar a dívida, sonha que ratos estão roendo o dinheiro que ele deixara
à disposição do leiteiro sobre a mesa da cozinha.
Até os anos 60, o leite era entregue na porta das casas das pessoas.
Uma das opções era deixar a garrafa de vidro vazia na porta para que o
entregador a trocasse por outra cheia. Funcionava um caderninho: num dia
combinado antecipadamente, o leiteiro batia e cobrava os atrasados,
“passando a régua”. Ou deixava-se a porta aberta para que o leiteiro
deixasse o produto na cozinha. O desenrolar do drama do funcionário
público endividado e com vergonha de olhar os credores atravessa os
capítulos e enche de angústia o leitor. O dinheiro do leite, a doença do
menino, a fome de Naziazeno… E enfim, o empréstimo salvador. Porém, ter
conseguido o dinheiro para quitar a conta do leite é apenas o início de
uma nova dívida, a expectativa de mais um dia caminhando atrás de uma
solução.
O
romance inicia com o ultimato do leiteiro. Ele suspenderá o
fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Ao
final do dia, mesmo o descanso de Naziazeno não é verdadeiro. O triste e
diminuto papel do protagonista no mundo é contado sem sentimentalismos
pelo texto Dyonelio, altamente coloquial. O escritor nos envolve no
drama do protagonista através dos pensamentos do personagem principal. A
reviravolta na narrativa ocorre quando, ao anoitecer, pensamos que o
caso está encerrado, mas tudo retorna nas angustiadas lembranças dos
movimentos do dia, agora observado sob novos ângulos.
Dyonélio Machado escreveu Os Ratos em vinte noites, logo
após chegar do trabalho como médico. Dormiu muito pouco naqueles dias e,
cedo, deixava o que escrevera à noite para sua mulher fazer a primeira
revisão. “Todo o livro estava muito claro para mim, porque eu havia
passado nove anos pensando nele, nove anos pensando nesse livrinho.
Então eu saía para atender os doentes, no hospício onde eu era médico e
nos dois hospitais onde também trabalhava, e, após tudo isso, ia para
casa e começava a escrever. Depois de minha mulher revisar eu levava as
folhas para uma mocinha que era empregada da Livraria Globo, a principal
de Porto Alegre, e que tinha sido indicada pelo Érico Veríssimo. Ela
datilografava o trabalho. Num dia, eu levava umas folhas manuscritas e
pegava outras datilografadas, e assim o trabalho ia avançando. Numa
dessas vezes ela perguntou: ‘Escute, doutor, o Naziazeno vai ser feliz?’
Eu lhe respondi: ‘Leia tudo, que você vai ver’. Foi assim que eu
descobri que tinha um romance”.
Os Ratos enquadra-se no chamado Romance de 30: denominação
dada ao conjunto de obras de ficção produzidas no Brasil a partir de
1928, ano de publicação de A Bagaceira, de José Américo de
Almeida. É um romance social por excelência. O drama urbano da classe
média baixa encontra protótipo perfeito na figura de Naziazeno Barbosa,
um homem fragilizado pela incapacidade de cumprir um papel necessário no
caos social em que vive.
Os Ratos costuma ser colocado lado a lado de Angústia,
de Graciliano Ramos. Há coincidências que ligam os romances. São duas
narrativas de estéticas inovadoras, mas que têm muito em comum. Ambas
são muito sérias e densas, ambas trabalham com o psicológico dos
personagens, ambas têm parentesco com Crime e castigo de Dostoievski e, para terminar, ambos os autores foram comunistas e ambos foram presos em meados dos anos 30.
Em 1935, Dyonélio recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de letras por Os Ratos.
Soube da premiação quando estava preso, incomunicável, no porão de um
navio estacionado no porto de Santos. Apesar disso, um amigo conseguiu
lhe avisar do fato.
Dyonelio Machado nasceu em Quarai, RS, em 1895. Político, psiquiatra,
jornalista e poeta, aos 12 anos já trabalhava no semanário O Quaraí. Em 1911, fundou o jornal O Martelo,
onde deixa clara sua adesão ao comunismo. Em 1929, formou-se médico e
estudou psicanálise, constituindo-se num dos responsáveis pela
divulgação da nova disciplina no Rio Grande do Sul. Em 1934, traduziu a
obra Elementos da psicanálise, de Eduardo Weiss, livro fundamental na área.
Dyonelio Machado dividia-se entre a política, a psiquiatria e a
literatura. O interesse pela última foi demonstrado por seu primeiro
livro de contos – Um pobre homem – publicado em 1927. Depois viria sua mais importante obra, Os ratos, de 1935, e O louco do Catí
(1942), outro romance clássico do autor. Sua obra foi reconhecida
tardiamente, tendo recebido destaque nos meios acadêmicos apenas a
partir da década de 80. Foi ainda um dos fundadores da Associação
Rio-grandense de Imprensa (ARI) e, mais tarde, colaborador dos jornais
Correio do Povo e Diário de Notícias, de Porto Alegre. Em 1946, com
Décio Freitas, fundou o jornal Tribuna Gaúcha, porta-voz do Partido Comunista Brasileiro.
Membro do PCB, em 1935 foi acusado de atentar contra a ordem política
e social ao trabalhar para a realização de uma greve de gráficos. Solto
mediante sursis, voltou a ser preso no mesmo ano, em razão da Intentona
Comunista. Suas posições ideológicas custaram-lhe dois anos passados na
prisão. Mas seguiu fazendo política, tanto que foi deputado
constituinte pela Partidão e, em 1947, com o PCB na legalidade,
elegeu-se deputado estadual, tornando-se líder da sua bancada na
Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Em 1956, numa entrevista para o jornal A Hora, disse: “Se algum conselho eu tivesse o direito de dar aos jovens, seria de que a vida deve ser vivida com indiferença”.
E, pouco antes de morrer, Dyonelio concedeu uma longa entrevista
para Julieta de Godoy Ladeira onde fez uma declaração que sempre
surpreende os que tem contato com seus bem cuidados textos: “Não releio o que faço. Meu narcisismo nasce e morre à primeira e única revisão”.
Dyonélio Machado faleceu em 1985, aos 90 anos.
Fontes:
— História da Literatura do Rio Grande do Sul, de Guilhermino Cesar
— O Pensamento Político de Dyonélio Machado, publicação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul
— Tiro de Letra
— Passeiweb
--------
Fonte: http://www.sul21.com.br/jornal/os-ratos-de-dyonelio-machado-completa-80-anos/ 13/09/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário