sábado, 2 de janeiro de 2010

Os tempos da vida

Moacyr Scliar*


No colégio, uma de nossas principais (e mais difíceis) tarefas era aprender a conjugar os verbos. Conjugar os verbos já não é mais uma condição para passar de ano; mas agora me parece uma coisa muito simbólica. Conjugar verbos é conjugar a vida. Em primeiro lugar, por causa das pessoas verbais. Começamos, e isso é muito significativo, com a primeira pessoa: “eu”. Um resultado indireto do instinto de preservação que existe em cada indivíduo. Lutamos pela vida; lutamos para nos afirmar. Na sociedade em que vivemos, esse instinto gerou um verdadeiro culto do ego, mas, felizmente para nós, a conjugação dos verbos não se esgota na primeira pessoa. Logo em seguida vem o “tu” (viva o Rio Grande, que preserva esse pronome!) e isso muda por completo o panorama de nossas relações. O relacionamento, diz-nos aquele notável filósofo da convivência, e do pacifismo, Martin Buber, acontece entre o Eu e o Tu, e se faz através do encontro, do diálogo, e da responsabilidade mútua: é uma intersubjetividade, não uma subjetividade exclusiva e frenética.

Depois temos o “ele”: este ser distante que não está no diálogo, mas que também existe e precisa ser lembrado. O mérito do “nós” é óbvio, mas confesso que não gosto muito do “vós”, cerimonioso e reverente demais; prefiro o “vocês”. E “eles” nos lembra a multidão de pessoas com quem temos pouco ou nenhum contato, uma realidade que deveria nos tornar mais humildes.

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Estudando a conjugação dos verbos descobríamos que, como diz a Bíblia no Eclesiastes (“Há um tempo para tudo”), existem tempos verbais para todas as fases da cronologia humana. Em primeiro lugar, temos o presente, o tempo no qual vivemos, e que nos recorda a recomendação do poeta Horácio: “Carpe diem”, curte o dia, desfruta o dia. O passado já passou, o futuro é incerto, o momento é agora, é o presente.

Mas, Horácio à parte, o passado está em nós, como estava nas páginas da gramática. E do passado havia variedades com nomes intrigantes, a começar pelo passado perfeito: “eu amei”. Admitindo que a perfeição exista, o que é muito duvidoso, por que é perfeito, esse passado? E por que “eu amava” é um passado imperfeito? E, mais surpreendente ainda, o que quer dizer um “passado mais que perfeito”, no qual “eu amara”?

Mistérios gramaticais e existenciais. Que não se esgotavam aí: logo depois, na conjugação, vinha o futuro. Tempo otimista, promissor: “eu amarei”. Meninos, acreditávamos nisso, acreditávamos que passaríamos o futuro amando, o que não era nada mau. Mas então surgia, na gramática, uma coisa chamada “futuro do pretérito”. Parece um oxímoro, uma contradição em termos: como pode o pretérito, o passado, ter um futuro? Mas o antigo nome desse tempo verbal, condicional, explicava-o: era algo que poderia ter acontecido: “eu amaria”. Eu amaria, se encontrasse a mulher de meus sonhos.

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Ah, sim, e temos o imperativo, expressão verbal do autoritarismo que está em todos nós, e o infinitivo, e o gerúndio, muito usado no Brasil porque é o símbolo da postergação, do adiamento (“estou providenciando”), e o particípio passado, mais resoluto (“tá falado”).

Os tempos verbais nos falam na vida. Nesta passagem de ano vamos lembrar: é bom aprender a conjugar a vida. Não se trata de nenhum exame, de nenhum Enem. É muito mais que isso.
*Escritor e colunista da ZH
FONTE: ZH online, 03/01/2010

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