domingo, 3 de janeiro de 2010

Perto do coração de Clarice


Biografia de Clarice Lispector
escrita por jornalista norte-americano
 revive o enigma de uma artista
que jamais deixou de buscar
um sentido místico para a existência

“Clarice era uma mulher insolúvel”, dizia Paulo Francis. A seu modo, o jornalista carioca reforçava um clichê sempre presente, que associa a mais popular escritora brasileira a uma aura de mistério. Não sem razão. Morta em 1977, aos 57 anos, a artista levou consigo muitos segredos. Em compensação, deixou uma obra em larga medida autobiográfica. Foram seus contos e romances que fisgaram o jornalista e ensaísta norte-americano Benjamin Moser, autor de Clarice, — biografia lançada nos EUA em agosto passado e, agora, traduzida para o português.

Ao longo de mais de 600 páginas, Moser encara diversas vezes “a esfinge”, sempre escudado na tese de que a escritora jamais teria assimilado as condições de seu nascimento, na devastada Ucrânia pós-Primeira Guerra. Segundo ele, Clarice carregou para sempre um sentimento de culpa por não ter conseguido salvar a mãe, falecida precocemente em decorrência de sífilis. A mesma sensação de impotência teria se repetido na morte do pai e, anos depois, na doença do filho Pedro.

A biografia aborda os primeiros anos de Clarice em Recife e refaz seus passos rumo à carreira literária. Aqui e ali, sempre de modo respeitoso, são contados episódios dolorosos e pessoais. Clarice, cuja beleza só rivalizava com a introspecção, viveu poucos amores — o primeiro e mais marcante deles pelo escritor mineiro Lúcio Cardoso. Seu breve casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente teria sido tumultuado por uma forte depressão. Sua realização sexual teria ocorrido somente com o também escritor Paulo Mendes Campos, que era casado.

Ao fim, a imagem desvendada de Clarice é tão estranha quanto aquela idealizada: uma pacata dona de casa que, em seus momentos de reclusão, escrevia sobre a natureza animal do ser humano e especulava sobre a verdadeira face de deus. Não é à toa que Moser aposta: Clarice é uma estrela que não se extinguirá na literatura universal.


A violência sofrida  pela mãe na Ucrânia

“Bem no fim da vida, Clarice confidenciou à amiga mais íntima que sua mãe fora violentada por um bando de soldados russos. Deles, ela contraiu sífilis, que nas pavorosas condições da guerra civil ficou sem tratamento. Se tivesse acesso mais rápido a um hospital, talvez houvesse alguma chance. Mas só vinte anos mais tarde a penicilina, o tratamento mais eficaz, iria se tornar senso comum.” p. 48

A descoberta da literatura

“Quando eu aprendi a ler e a escrever, eu devorava os livros! Eu pensava que o livro é como árvore, é como bicho: coisa que nasce! Não descobria que era um autor! Lá pelas tantas, eu descobri que era um autor! Aí disse: ‘Eu também quero’.” p. 123

Simpatia pelos animais

“Quando menina, Clarice vivia ‘cercada de gatos’: ‘Eu tinha uma gata que de vez em quando paria uma ninhada de gatos. E eu não deixava se desfazerem de nenhum dos gatinhos. O resultado é que a casa ficou alegre para mim, mas infernal para as pessoas grandes’. Passava horas com os frangos e as galinhas no quintal: ‘Eu entendo uma galinha, perfeitamente. Quero dizer, a vida íntima de uma galinha, eu sei como é’. ” p. 92

A morte do pai

“Em agosto, Pedro teve um pequeno problema de saúde que o levou a um médico. Ficou sabendo que sua vesícula biliar precisava ser retirada, uma cirurgia simples marcada para 23 de agosto de 1940. No Brasil daquela época, qualquer cirurgia era arriscada, mas suas filhas não achavam que havia motivo para alarme. No entanto ele voltou para a clínica com uma dor considerável e morreu dali a três dias. Depois de uma vida marcada pela pobreza e pelo exílio, pelo martírio de sua esposa amada e pela luta incessante para criar e encaminhar suas filhas num país completamente estrangeiro, ele morreu aos 55 anos.” p. 146
Lúcio Cardoso, affair impossível

“‘Ele nunca vai casar com você, é homossexual”, disse-lhe seu colega Francisco de Assis Barbosa. ‘Mas eu vou salvá-lo’, replicou Clarice. ‘Ele vai gostar de mim.’ O relacionamento, não é preciso dizer, nunca decolou. Provavelmente foi melhor assim, porque as anedotas sugeriam que Lúcio daria um marido difícil.” p. 158

A esquizofrenia do filho

“No caderno em que registrava a esperteza e sabedoria de Pedro, Clarice fez uma curiosa anotação que ela deve ter olhado retrospectivamente com um calafrio quando a extensão do problema ficou clara. ‘Mamãe’, ele lhe contou, ‘eu tenho ouvidos especiais. Posso ouvir música no meu cérebro, e posso ouvir vozes também, que não estão lá.’ Não está claro em que momento, exatamente, Clarice e Maury começaram a se preocupar com Pedro, mas quando ele tinha nove anos Clarice mencionou às irmãs que ia colocá-lo num centro de orientação, ‘onde, além de instrução, ele receberá ajuda em relação às emoções’.” p. 317

O romance com Paulo Mendes Campos

“Por um breve tempo, Clarice e Paulinho viveram uma grande paixão, como confirmam todos os que os conheceram. Formavam um estranho casal: Clarice, alta, loura e fascinante; e Paulinho, não mais o Byron de seus anos de juventude, baixo, moreno e, apesar do charme, fisicamente pouco atraente. Uma amiga se lembra de tê-los visto entrar num restaurante do Centro e de ter dito a seu acompanhante: ‘O que o Paulinho está fazendo com aquela Valkíria?’ Mas, como diz outro amigo, Ivan Lessa, ‘em termos de neurose, os dois foram feitos um para o outro’.” p. 369

O incêndio

“Os dois vícios de Clarice, os cigarros e os remédios para dormir, cobravam finalmente seu preço. Ela dormia numa cama de solteiro, junto a uma janela com cortinas, e sempre tivera problemas com o sono, indo dormir por volta das nove e levantando nas primeiras horas da manhã. Naquela noite, depois de tomar suas píulas, ficou fumando na cama. Quando acordou o quarto estava em chamas. Seu filho Paulo tirou-a do quarto incendiado e tocou insistentemente a campainha do apartamento vizinho. Os assustados moradores, Saul e Heloísa Azevedo, mal saíram do sono e viram Clarice, com o corpo todo queimado, em pé diante da sua porta. Ela não disse uma única palavra. Saul e Paulo correram para apagar o fogo enquanto Heloísa levava Clarice para dentro. Sua camisola de náilon meio derretida estava grudada no corpo e, ao caminhar pelo carpete de Heloísa, deixou pegadas de sangue.” p. 412

Imaginação como fuga

“O truque de Clarice tinha falhado. Seus sonhos de intervenção divina foram frustrados. Mas o hábito que ela adquiriu na primeira infância, de brincar com as palavras e contar histórias para alcançar um resultado milagroso, permaneceu. Meio século depois, quando Clarice Lispector, ela própria consumida por uma doença terminal, deixou sua casa pela última vez, recorreu à mesma tática. ‘Faz de conta que a gente não está indo para o hospital, que eu não estou doente e que nós estamos indo para Paris, sua amiga Olga Borelli se recorda de ouvi-la dizer num táxi a caminho do hospital. (…) A Paris nunca aconteceu. Clarice Lispector morreu seis semanas depois”. p. 100

ENTREVISTA » Benjamin Moser

Foram cinco anos de pesquisa obsessiva, ao cabo dos quais o texano Benjamin Moser, 33, trouxe à tona a “sua” Clarice. O mergulho na obra da escritora foi tão apaixonado que o jovem ensaísta, poliglota, atualmente radicado em Amsterdã (Holanda), criou um inusitado vínculo com o Brasil, a ponto de ter se sentido “100% em casa” quando do lançamento da biografia no Rio de Janeiro, no mês passado. Para ele, é um desfecho natural e desejado, após o sucesso alcançado pelo livro nos EUA. Nesta entrevista concedida por e-mail e em português, ele comenta aspectos da personalidade de Clarice, a importância das raízes judaicas da autora e o curioso caso de Jacob Nachbin — personagem mencionado em uma única nota de rodapé do livro.

Primeiramente, o senhor poderia comentar um pouco sobre sua relação com a língua portuguesa e com o Brasil? Como foi lançar o livro por aqui?
Eu me sinto 100% em casa no Brasil, com tantos amigos. E, depois de tantos anos, cada vez que vou aí ainda descubro coisas novas, inauditas. Por isso foi uma grande alegria trazer “minha” Clarice para a terra dela, uma terra que para mim é muito querida. O público brasileiro reagiu com tanta empolgação que foi uma gratificação enorme para mim. Durante anos, andava pelo mundo falando de Clarice, pensando que era uma pena ela não ser mais conhecida fora do Brasil, pensando em como remediar a situação, mas o momento decisivo veio quando estava sentado no meu jardim aqui na Holanda, falando dela com um amigo de Nova York, que disse: “Mas tem aquele festival começando amanhã em Paraty em que ela vai ser homeangeada, por que você não vai?” Peguei o avião no dia seguinte, fui, e aí não parei mais.

O que foi decisivo para o início dessa aventura que perdurou mais de cinco anos? O episódio de Jacob Nachbin teve alguma influência?
Interessante que você pergunta sobre Jacob Nachbin, o primeiro marido de minha avó, cujo filho Leopoldo foi o melhor amigo de Clarice no Recife. É uma história louca. Ele tinha vindo da Polônia para Pernambuco ao redor do ano 1919, e ficou lá um tempo. O cara foi um ladrão, um bígamo, mas também foi uma pessoa absolutamente genial, sem nenhuma educação, que conseguiu se fazer o primeiro historiador dos judeus no Brasil. Depois foi para os Estados Unidos, casou com minha avó, que era uma estudante de uns 20 anos, foram para o México, onde ele começou a roubar documentos preciosos do Arquivo Nacional. Foi preso e expulso junto com minha avó, e a primeira sra. Nachbin, pelo jornal judaico de Buenos Aires, ficou sabendo... O casamento com minha avó foi anulado; ele, expulso a Portugal (já tinha sido expulso do Brasil, do México, e dos Estados Unidos). O episódio eu só descobri logo depois (semanas depois) da morte de minha avó. Deve ter mexido com ela muito. E talvez daí meu primeiro interesse pela comunidade judaica de Pernambuco.

Clarice parece ser movida por duas forças contraditórias — culpa e desejo de liberdade. A arte foi, enfim, uma redenção para ela? E a maternidade, que papel teve?
Não sei se são contraditórias — afinal, desejo de liberdade pode também ser o desejo de se libertar de uma culpa. Ela disse certa vez que escrever não lhe trouxe o que ela queria, “isto é, a paz”. Mas também disse que “arte não é liberdade: é libertação”. Ela sabia, no final da vida, o que ela tinha alcançado artisticamente, e isso foi uma recompensa para as dificuldades que ela sofreu em sua vida, inclusive com a maternidade: um dos filhos dela era doente e isso, conforme me disse uma amiga dela, “doeu de maneira brutal”.

Seria correto afirmar que seu livro fornece uma “chave judaica” para  compreender a obra da autora?
Grande parte dos acontecimentos trágicos que a marcaram ocorreram na primeira infância. Ela teria sido impactada por uma espécie de memória genética, misteriosa até para ela mesma?
Acho que sim. Porque os acontecimentos trágicos que sofreu, até antes de nascer, são fundamentais para entender a psicologia dela, mas não sei se foi uma memória genética. Foi uma consciência muito nítida de fatos muito concretos que tinham acontecido a sua família, não só com a mãe, mas também a ela própria, vendo seu pai sofrer derrota atrás de derrota ao tentar se fazer uma vida nova no novo país. E é importante entender que tudo o que sofreram, as perseguições e o exílio, sofreram porque eram judeus, e que neste sentido não é de estranhar que Clarice demostrará preocupações similares aos de outros artistas judeus.

Clarice tinha o hábito de minimizar  as críticas menos amigáveis e,  ao mesmo tempo, se autodepreciar.
Se estivesse viva, ela se contentaria em ser uma mera blogueira?
Ela nunca fazia questão de “ser escritora”, ela fazia questão de escrever. E de fato ela compôs várias obras tardias quase como se fosse num blog — fazia anotações soltas em guardanapos, papéis... e a partir dali compôs seus livros. Mas acho que a maneira de escrever não lhe importava tanto como o fato de escrever.

O senhor acredita que Clarice ainda experimentará uma “redescoberta”, sobretudo para os países de língua inglesa? Sua mensagem é universal?
Bom, estou fazendo o possível para que isso aconteça e até agora, com toda a atenção que o livro, e portanto ela, tem recebido internacionalmente, penso que vamos na direção certa. Porque, sim, a grande arte, como a dela, é universal — tem uma mensagem que não deixa de ser importante porque a Polícia Federal carimbou o passaporte!

REPORTAGEM por GUSTAVO FALLEIROS
FONTE: http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 03/01/201

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