sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A alma do Ocidente e a crise da Igreja

Mauro Santayana*

Todas as grandes revoluções do homem – entre elas, a maior de todas, a do Ocidente – trouxeram, em seu bojo, os germes de sua própria crise. Em Creta, machados de pedra próprios de uma cultura africana de há mais de 100 mil anos, revelam que os homens daquele tempo já navegavam e avançaram pelo Mediterrâneo até a ilha. É possível situar em Creta o início da civilização grega e, com ela, a ideia do Ocidente: extraordinária aventura da inteligência naquela região de passagem entre o Oriente, a África e a Europa nórdica. Quando entendemos o século 5 a.C. como o mais expressivo da civilização helênica, os últimos 25 séculos têm sido, ao mesmo tempo, de extraordinária criatividade intelectual, de fantásticas descobertas científicas e de profunda inquietação dos homens.


Nesse período tentamos explicar as crenças ancestrais mediante a razão filosófica, sem êxito: a mesma lógica de que se valem os crentes para provar a existência de Deus serve para desmenti-la. Da mesma forma, a ciência não tem como negar uma inteligência absoluta, anterior ao Universo e a ele estranha. O Iluminismo, com suas dúvidas, iniciou, no século 18, o processo da ciência contra a fé. A Igreja refugiou-se nos dogmas, em lugar de estabelecer diálogo fecundo com a ciência. Essa oportunidade já fora perdida no século anterior, primeiro com a condenação de Bruno à fogueira e, em seguida, com a hesitação da Academia Pontifícia de Ciências, criada em 1603, pelo papa Clemente VIII. A Academia surgira animada nada mais nada menos por Galileu, e o processo contra o maior cientista de seu tempo levou-o à abjuração de suas convicções, a fim de evitar a morte.

A Academia desapareceu com a morte do papa que a fundara, e só foi restabelecida em 1847, sob o papado de Pio IX, que começou como progressista e se tornou o símbolo do ultramontanismo. Como marco de sua incompatibilidade com a ciência, o papa declarou o dogma da concepção imaculada (ou seja, em plena virgindade) de Maria, em 1854. Cem anos depois, na mesma linha, Pio XII – que fora tão tolerante com Hitler – decretou outro dogma, também sobre a mãe de Cristo: tal como o filho, ela, de acordo com a infalibilidade papal, subiu aos céus viva, em corpo e alma.

Não obstante o esforço de alguns cientistas católicos, e de homens da Igreja mais sensatos, o diálogo entre a Igreja e a ciência não pôde ainda estabelecer-se. A Academia continua com sua sede em belíssima edificação nos jardins do Vaticano, construída no século 16, para ser a residência de verão de Pio IV, e reestruturada por Pio XI, em 1936. O único leigo a presidir a Academia Pontifícia foi o cientista brasileiro Carlos Chagas, filho, que nos 16 anos em que dela se encarregou (de 1972 a 1988) se dedicou, principalmente, a advertir o mundo contra os perigos de uma guerra nuclear e a discutir os problemas éticos da atividade científica.

A eterna crise do Ocidente está na ética, que devia ser o ponto de encontro entre a ciência e a fé. Ao analisar a decadência da civilização grega – esse primeiro patamar do Ocidente – Lord Acton lembrou a crise ética que, de passo em passo, dissolveria a república. Segundo sua análise, aquela intensa e não comparável atividade da inteligência havia abalado a crença nos deuses, e eram os deuses que ditavam as leis. “Foi curto o passo entre a suspeita de Protágoras, de que não havia deuses, e a assertiva de Crítias, de que não havia mais a punição da lei. Se nada é certo em teologia, tampouco é certo na ética, nem na obrigação moral” – diz o grande pensador católico.

O Vaticano, a partir da morte de Ângelo Roncalli, o papa João XXIII, perdeu a oportunidade do retorno à ética dos primeiros cristãos, ao abandonar a Teologia da Libertação que, além de libertar os pobres, libertava a Igreja da influência dos grandes poderes do mundo. Esse desencontro está tirando da grande instituição o que restava do poderoso lastro ético de alguns de seus santos, como Francisco de Assis. A penosa discussão de Ratzinger com os bispos irlandeses e sua indiferença para com os pobres do mundo mostram que as igrejas cristãs (com os protestantes não é diferente) não podem mais falar em nome da ética, isto é, de Deus. Mas Deus continua e continuará entre os homens, enquanto a espécie existir.
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*Escritor e Colunista do JB
Fonte: Jornal do Brasil online, 17/02/2010

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