Jorge Barcellos*
O paradoxo do fetichismo da mercadoria é que a ilusão da realidade está no que fazes,
não no que pensas [enquanto] a ideologia funciona, cada vez mais,
não no que pensas mas no que fazes. Slavoj Zizek
Passado o Carnaval e a inversão de papéis que promove, é boa hora para a reflexão sobre cenas que o marcaram. A primeira é a participação de Júlia Lira, de sete anos, no desfile da escola de samba Unidos do Viradouro como rainha da bateria, autorizada pelo juízo da Vara da Infância e da Juventude do Estado do Rio de Janeiro. Os defensores da decisão argumentam que sua participação, como a da presença da cantora Elza Soares (mais de 70 anos) como madrinha, era o esforço de uma “mudança de paradigma” frente à erotização do Carnaval. O novo e a experiência como substituto da sexualidade exacerbada. Os contrários a sua participação afirmam que houve flexibilização dos direitos humanos característicos, mais uma vez, de um processo de erotização da infância. Não é possível esquecer, no mesmo campo, o hit do carnaval baiano, “Lobo Mau”, canção que em seus versos diz: “Menina onde você vai que eu vou atrás/vou te comer, vou te comer”. Carlos Nicodemos, membro da OAB do RJ, colocou a questão fundamental: “No caso da pequena Júlia, trata-se aqui de atendermos aos interesses da criança ou do Carnaval?”
A segunda, o Globo Repórter do último dia 5 de fevereiro, que preparava, vamos dizer assim, o espírito para o Carnaval. Eduardo Escorel (FSP, 14/2) o descreveu como o contraexemplo mais notável do que se passa em nosso imaginário. O programa traduzia um filme produzido por diversas emissoras europeias sobre reações neurológicas provocadas pela paixão. Enquanto que a ênfase original estava nas animações do corpo marcadas pela paixão, o programa tratou de construir uma narrativa infantilizante, com pérolas do tipo “o amor afeta o cérebro como um doce”, “o cérebro toma a rédea da odisseia mágica do corpo apaixonado” etc. Ora, como aponta Escorel, qualquer adulto normal vendo tal programa naquele horário (sexta-feira, 22h30min), só pode se sentir tratado como criança.
Os exemplos sugerem uma reflexão. A inversão de papéis característica do tempo do Carnaval podem estar se transformando, perigosamente, em elemento de nossa cultura. A obscenidade em tratar crianças como adultos é da mesma natureza do tratamento de adultos como crianças. Slavoj Zizek denominou de “pacto perverso” o campo que se instaura quando a autoridade social perde para os impulsos agressivos ilícitos. Estamos diante de rituais que se dizem comandados pelo dever quando em realidade ocultam seu gozo pela execução da violência – contra a criança, erotizada, contra o adulto, dessexualizado.
O Carnaval pode ter passado, mas a imagem de uma criança chorando no meio da avenida nos diz que se não fortalecermos as instituições públicas para protegê-las, estaremos nos aproximando da catástrofe.
_________________________________* Doutorando em Educação – UFRGS
FONTE: ZH online, 21/02/2010
FONTE: ZH online, 21/02/2010
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