Glaucio Ary Dillon Soares*
Há alguns anos, um professor assistente de espanhol, que alugava minha casa na Flórida, cometeu alguns crimes contra mim. Eu estava no Brasil, em licença médica da Universidade da Flórida, para enfrentar um câncer. Os acordos foram verbais; no plano da confiança. Quando retornei, para resolver algumas inexplicáveis questões burocráticas, descobri que o professor não fizera um só pagamento e, para encobrir a inadimplência, sequestrou a minha correspondência. Quando o confrontei, tentou me enganar afirmando que levara a correspondência para o centro no qual eu trabalhava para ser reenviada. Bastou uma reunião com o pessoal do escritório, para confirmar que nunca estivera lá. Contratei uma advogada que, em dias, o despejou, mas antes a esposa do professor me entregou alguns sacos plásticos grandes com a minha correspondência. Ele também retirara meus livros da casa, deixando-os num depósito. Como tampouco pagou o aluguel do depósito, minha biblioteca tinha sido vendida.
O prejuízo foi grande: contas que não me foram remetidas não foram pagas e quase perdi a casa. Para receber parte do que o professor me devia contratei um advogado que me aconselhou a fazer um acordo. O professor (cubano) de espanhol aceitou o acordo para pagar os aluguéis devidos em um ano, sem pestanejar. Recebi muito menos do que o prejuízo e o advogado (encarregado da cobrança) ficou com 40% desse subtotal.
Conversando com meu filho Sergei expressei minha indignação de que isso fosse feito por um professor universitário com uma pessoa que lutava contra uma doença mortal. Esse tipo de criminoso não é incomum. Mentem até onde podem. As mentiras repetidas e as contradições o entregaram: é um psicopata, não sente remorso. Sergei, na sua sabedoria, me perguntou: pai, quem te disse que professores universitários são mais éticos do que lixeiros, serventes ou quem quer que seja? É verdade: eu tinha uma imagem deturpada, muito melhorada, dos meus colegas. Não somos uma versão melhorada da humanidade.
Pode ser pior. Há poucos dias uma professora de biologia da Universidade de Alabama foi acusada de matar três colegas a tiro. O motivo seria a negação do pedido de estabilidade. Na famosa e elitista Yale uma estudante de doutorado foi encontrada morta e emparedada. Um técnico de laboratório foi acusado e preso pelo crime.
Em agosto passado, em Harvard — e nada menos do que na Escola de Medicina — seis estudantes foram parar na emergência, envenenados com um preservativo tóxico que era usado no laboratório. A polícia não conseguiu concluir se foi uma tentativa de assassinato ou se foi incompetência e descuido.
Em 2000, os promotores acusaram Bruce Edwards Ivins, um pesquisador do United States Army Medical Research Institute of Infectious Diseases de matar cinco pessoas e infectar muitas outras usando o antrax produzido no laboratório — em 2001. Ivins se suicidou e o caso foi encerrado.
Um geneticista de renome mundial, W. French Anderson, com centenas de publicações e um dos que bolaram a terapia genética, foi condenado a 14 anos de prisão por abusar sexualmente da filha de um colega durante vários anos, começando quando ela tinha 10 anos.
Um renomado historiador perdeu uma das cátedras mais cobiçadas em estudos latino-americanos, em San Diego, porque agrediu sexualmente várias alunas; outro, na Universidade de Harvard, perdeu importante posição pela mesma razão. O escândalo foi abafado no estilo Harvard: houve acordo, as vítimas foram compensadas com dinheiro e/ou cargos, e algum tempo mais tarde o agressor foi discretamente substituído.
A lista seria muito grande se o mundo acadêmico não encobrisse os crimes de seus membros; as instituições não querem que esses crimes venham à tona, causando prejuízo e baixa de prestígio.
No Brasil, o mundo acadêmico segue uma combinação da lei de Gerson e do corporativismo. Professores que não trabalham, que não dão aulas, que não estudam, que não pesquisam, que faltam inclusive no dia da defesa dos seus orientandos, cujas teses não leem, podem passar 20, 30 anos fazendo essas barbaridades sem sanções. Alunos e alunas são, frequentemente, vítimas de abusos de todo tipo, mas a cultura brasileira é permissiva no que concerne a abusos sexuais e violências contra minorias. Nas universidades públicas, criminosos e preguiçosos contam com a proteção adicional de serem funcionários públicos.
Os nobres valores do mundo acadêmico não são proteção eficiente contra crimes, grandes e pequenos. Os psicopatas constituem entre 1% e 3% da população e nada impede sua entrada no mundo acadêmico. Entram, e não saem mais. Hoje me dou conta da minha ingenuidade quando acreditava que professores e pesquisadores tinham, obrigatoriamente, patamar ético de conduta mais elevado.
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*Sociólogo, pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj)
Fonte: Correio braziliense online, 20/02/2010 Imagem: Kleber Sales/D.A Press
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