Olga de Mello*
Sociedade: Brasileiras das classes populares mostram atitude aberta tanto em relação à vida como à estética corporal e não se submetem a padrões rígidos, constata pesquisadora carioca.
Aparência de magra: para mulheres das classes C e D,
"discurso ideológico que envolve a dieta e o embelezamento
perde a força diante do preço dos alimentos e desses produtos",
diz psicóloga
Cartão de visita, atestado de sucesso, comprovante de trabalho e construção pessoal. As múltiplas definições dos estudiosos para a simbologia em torno do corpo brasileiro refletem a obsessão nacional que, travestida sob uma falsa noção de cuidados com a saúde, se tornou um produto de culto e consumo. Se o fortalecimento financeiro das classes emergentes permitiu sua aproximação de outras camadas da população no uso de produtos e mecanismo de embelezamento, ainda há peculiaridades próprias de cada cultura na exposição desses corpos, principalmente os femininos.
"A mulher pobre tem uma relação mais liberta e mais lúdica, menos persecutória, com o corpo, vestindo roupas que o recobrem, mas não o encobrem, com uma apropriação criativa dentro de outro padrão estético", observa a psicóloga carioca Joana Vilhena de Moraes, coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Nos últimos dois anos, Joana entrevistou mulheres das comunidades de Rio das Pedras, Rocinha e Parque da Cidade para uma pesquisa que complementa seu trabalho anterior, enfocando os cuidados estéticos da população feminina de classes média e alta na zona sul carioca, descrito em "O Insustentável Peso da Feiura" (PUC/Garamond). A nova pesquisa já foi convertida no livro "Com Que Corpo Eu Vou? Sociabilidade e Usos do Corpo em Camadas Populares", a ser lançada no mês que vem.
No levantamento, a psicóloga constatou, além da franca exibição dos corpos, a pouca reserva ou cautela das entrevistadas quanto à privacidade. Elas abriam as casas, recebiam Joana no quarto, trocavam de roupa na frente dela, desfilavam diferentes trajes, cozinhavam, ralhavam com os filhos. "Participar da pesquisa confere visibilidade social para essas mulheres, enquanto as de classe média e alta preferem dar entrevistas por telefone ou em lugares públicos. Essa atitude franca, aberta, também está no prazer ao exibir o corpo, sem submissão a padrões rígidos de magreza, já que a comida tem a ver com opulência e prosperidade", diz Joana.
Apesar de procurar fazer ginástica e se inscrever em hospitais públicos para cirurgias de redução de estômago, essas mulheres não reverenciam os rígidos padrões estéticos nacionais, preferindo a exuberância de Ivete Sangalo ao corpo magro de Gisele Bündchen. A vida saudável proporcionada por uma alimentação adequada e ingestão de produtos de baixas calorias é uma utopia que elas desprezam. "O discurso ideológico que envolve a dieta e o embelezamento perde a força diante do preço dos alimentos e desses produtos. Elas assumem, sem paranoias, o prazer que podem desfrutar de corpos fora de forma. O uso do corpo e da sexualidade são plenos", afirma Joana.
A exposição dos corpos no Brasil, particularmente na zona sul carioca, é um fenômeno único para estrangeiros, como o antropólogo francês Stephane Malysse. Radicado em São Paulo, onde é professor na USP, Malysse percebeu o corpo "mais presente" no Rio do que na França, quando visitou a cidade pela primeira vez em 1996. Dois anos depois, iniciava a pesquisa sobre a corpolatria brasileira diante do olhar de quem vem de outros países. O culto ao corpo modelado pelas academias de ginástica era maior nas classes médias e altas. Já o desnudamento de homens e mulheres fora dos limites praianos era comum entre os que vinham das classes C e D.
"O corpo é um cartão de visita no Brasil e a musculatura, uma extensão sexual do gênero. A roupa amplia o corpo brasileiro, não serve para esconder, camuflar imperfeições. Na França, mulheres jovens a partir dos 20 anos vestem-se como suas mães, porque isso tem a ver com o amadurecimento, chegar a uma outra etapa da vida. Aqui é justamente o contrário", constata Malysse.
Retardar ou retirar marcas do tempo não é vaidade para as brasileiras, mas sinônimos de asseio ou saúde, diz Joana Vilhena de Moraes, lembrando que desde a estabilização da moeda, em 1994, há um aumento anual de 30% nas cirurgias plásticas. Ela destaca ainda que 44% da população feminina brasileira gasta 20% do seu salário em estética.
"Dentro de uma sociedade consumista, artigos de beleza viraram sinônimos de asseio, de saúde. Por isso, cosméticos nem são mais considerados supérfluos. Cuidar de si passou a ser uma obrigação e uma nova jornada de trabalho para a mulher. A beleza é vista como um dever e uma obrigação e não um direito", afirma Joana.
Fora do Brasil, o panorama é outro, garante a antropóloga Mirian Goldenberg, que tem acompanhado grupos de brasileiras e alemãs de classes média e alta, todas acima de 40 anos. "Aqui, o corpo é um verdadeiro capital, como já dizia Pierre Bourdieu. As mulheres não têm outro tipo de valorização e o corpo se transformou em mecanismo de ascensão social. Na Alemanha, a diferença começa por não haver tantas mulheres de cabelos tingidos. O amadurecimento não é visto como um estigma, mas como a época em que estão no auge da realização profissional", diz a antropóloga, que relata em seu livro "Coroas" (Record) a dificuldade em formar um grupo de discussão sobre envelhecimento com mulheres acima de 50 anos. O problema não era integrar o grupo, mas chamá-lo de coroas, como queria Mirian.
"Permaneço a única participante do grupo. Todas as indicações para rebatizá-lo ridicularizavam a velhice, reafirmando a juventude e a sexualidade em corpos maduros. Algumas sugeriam que se chamasse 'jovens coroas' ou 'coroas gostosas'", conta.
Segundo a antropóloga, as alemãs maduras consideram falta de dignidade os desvarios cometidos em nome da aparência mais jovem. "A mulher acima dos 40 anos tem um discurso de libertação, sente-se capaz de usufruir o momento em que seu corpo não é objeto de tanto desejo. No Brasil, o que escuto é o desespero das mulheres que se sentem invisíveis por não ser mais olhadas como ser sexual. Na Alemanha, nesse momento elas comemoram a liberdade. A aparência está dissociada da sexualidade, tanto que é comum pessoas mais velhas namorarem. E lá eles têm Ângela Merkel, que não precisou da beleza para chegar ao poder", comenta Mirian.
________________________________*Olga de Mello, pesquisadora carioca - para o Valor, do Rio
Fonte: Valor Econômico online - Caderno EU & Fim de Semana, 26/02/2010
Muito interessante essa postagem.
ResponderExcluirFalo sobre isso na minha dissertação.
Abraços.