quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Método para os virtuosos

Suzana Herculano-Houzel*

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[...] COMO O DIA SÓ TEM 24 HORAS, É PRECISO ESCOLHER NO QUE TREINAR O CÉREBRO

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Adoro assistir às apresentações olímpicas de patinação artística, que são para mim semelhantes aos grandes concertos de música: o que se tem diante dos olhos são demonstrações da enorme destreza e virtuosidade que o cérebro humano pode alcançar com alguns anos de prática, paixão e... um bom método.

Dos treinos de patinação artística não entendo, mas conheço por experiência própria o valor de um método adequado para o desenvolvimento da precisão técnica ao piano. Como na patinação, ninguém vira um virtuoso sem muita prática, de preferência diária.

Mas, quanto mais rapidamente essa prática cobrir todas as combinações possíveis de movimentos a serem usados nas demonstrações ou concertos, melhor e mais completo será o atleta do rinque ou do piano. Afinal, mesmo para tocar a sequência de 896 notas com a mão direita do "Voo do Besouro" em pouco mais de um minuto, começa-se juntando sequências menores de dois ou três movimentos dos dedos.

Um cérebro cujos núcleos da base já são craques em executar rapidamente sequências pequenas -digamos, anular-mínimo-médio ou anular-médio-mínimo (tente!)- não terá grandes problemas mais tarde para aprender a executá-las dentro de sequências maiores.

E aqui entra o método. No século 19, o pianista francês Charles Hanon não sabia da neurociência por trás do aprendizado do piano, mas sabia que os métodos tradicionais de Czerny e Clementi, melodiosos, mas pouco estruturados, levavam muito tempo para dar resultados a seus estudantes.

A mão esquerda era relegada ao acompanhamento; anular e mínimo eram usados só aqui e ali. Identificando essas fraquezas, Hanon criou um programa revolucionário de estudo. Com "O Pianista Virtuoso", usado em conservatórios de música até hoje, o aluno pode treinar em meia hora diária todas as sequências possíveis de três dedos, incluindo o mindinho, e ainda fazer sua mão esquerda alcançar a mesma destreza e rapidez que a direita. Com mais uma hora, têm-se oitavas, arpejos, trinados, tremolos: está tudo lá.

Como o dia só tem 24 horas, é preciso escolher no que treinar o cérebro. O meu virou neurocientista; não dá para ser pianista só nas horas vagas, mas, com a ajuda do Hanon, até que ainda toco bem o suficiente para agradar ao meu sistema de recompensa. Outros dedicam seus núcleos da base a fazer coisas impressionantes sobre o gelo, enquanto pianistas e cientistas olham admirados, cada um com sua expertise. Viva a diversidade!
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*SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante) e do blog www.suzanaherculanohouzel.com
suzanahh@gmail.com
Fonte: Folha online, 18/02/2010

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