domingo, 21 de fevereiro de 2010

O direito de dormir

Rubem Alves*

Ao John Sydenstricker, Homem puro e simples...

Não existe imagem que mais tranqüilize a alma que a imagem de uma criança adormecida. Seus olhinhos fechados dizem que o seu pequeno corpo está aninhado, fechado dentro de si mesmo, num ninho de silencio e escuridão.

Mas é comum que essa tranquilidade seja precedida por uma luta contra o sono: a criança não quer dormir. Ela tem medo da escuridão. E o medo agita a alma.

Foi pensando nisso que os músicos inventaram um tipo de música chamado “berceuse”, que é uma canção doce destinada a ajudar as crianças a dormir. Ah! Como são lindas as berceuses de Brahms e de Schumann! Elas acalmam a criança amedrontada que mora em mim, põem os seus medos para dormir. E enquanto seus medos dormem, eu durmo bem longe deles... Mas isso que os músicos fizeram foi apenas instrumentalizar as canções que as mães de todo mundo inventaram para fazer seus filhos dormir. As berceuses acalmam as almas das crianças.

Tudo o que existe precisa dormir. O simples existir cansa. A se acreditar nos poetas e nas crianças, até mesmo as coisas.

Minha filha quando tinha quatro anos, olhando os vales e montanhas que se perdiam de vista nos horizontes de Campos de Jordão, fez-me essa pergunta metafísica: “Papai, as coisas não se cansam de serem coisas?”

Fernando Pessoa teve suspeita semelhante e escreveu: “Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, há tanto tempo... Tenho dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir, de ser, só de ser, o ser triste, brilhar ou sorrir...”

Ele, poeta, estava cansado. Olhava para as estrelas que luziam há tanto tempo — e tinha dó delas. Elas deveriam estar muito cansadas. Suas pálpebras jamais se fechavam. Seus olhos estavam sempre abertos, sem poder dormir jamais...

Pergunto-me então se não haverá um simples cansaço de viver. Será que não chega o momento em que a vida diz, das profundezas do seu ser, como um pedido de socorro aos que entendem a sua fala: “Estou cansada. Quero dormir o grande sono...”?

Os especialistas na arte da tortura descobriram que uma das técnicas mais eficazes e discretas para se obter a confissão de um torturado era a de impedir que ele dormisse. Assentado numa poltrona confortável, o prisioneiro espera. O tempo passa em silêncio, sem interrogatório. Vem o sono. As pálpebras pesam e querem se fechar. Mas alguém que o vigia o sacode para impedir que ele durma. E assim o tempo vai passando. O desejo de dormir vai crescendo, as pálpebras pesam até um ponto insuportável. Nesse momento a necessidade de dormir é tão terrível que o prisioneiro está pronto para confessar qualquer coisa só para poder dormir.

Foi coisa parecida que fizeram com a Eluana Englaro, mulher italiana com 37 anos de idade dos quais 17 se passara em vida vegetativa. Seu sono sem despertar dizia que ela desejava dormir. Mas os torturadores, a ciência, as leis e a religião lhe negavam esse direito. Obrigavam-na a continuar viva contra a vontade do seu corpo que ansiava pelo grande sono. Ligaram seu corpo a máquinas que impediam que ela dormisse. Vivia mecanicamente.

De noite o corpo cansado deseja dormir, deseja descansar enrolado no manso veludo da inconsciência. Na noite da vida, a velhice, o corpo cansado deseja morrer, deseja descansar enrolado no manso veludo da inconsciência. Dormir e morrer são a mesma coisa.

Finalmente o direito de dormir lhe foi concedido. Fantasio que ela dormiu como uma criança, ouvindo aberceuse de Brahms...
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 21/02/2010

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