Andrés Torres Queiruga*
"Muitos crentes e teólogos dão por certo que Deus poderia ter evitado o terremoto do Haiti, mas que não o fez; mas, sendo onipotente, isso, definitivamente, significa que não quer. Outros, menos, atrevem-se a dizer que não pode; mas então que "deus" é esse, e quem poderá dar-nos esperança?"
A catástrofe foi terrível: como um golpe na consciência do mundo, já castigado pela crise econômica. Por sorte, a reação foi quase surpreendentemente boa. Produziu-se uma espécie de salto qualitativo na solidariedade mundial tanto nos indivíduos como nos estados que, como nunca antes, compreenderam a necessidade, com rigorosa justiça, de unir-se para reconstruir um país destroçado e, antes, exaurido (o cumprirão?).
Também a teologia, na quase totalidade dos artigos publicados, soube apontar algo fundamental: não remeter o problema a Deus, centrando-se na catástrofe natural, mas insistir em nossa responsabilidade humana, no fato de que, por nossa culpa, os males causados tenham afetado antes de tudo e sobretudo os pobres. Eles sofreram e sofrem majoritariamente as piores e mais dolorosas consequências.
O que se espera não é, pois, o puro lamento ou a simples compaixão, mas a ajuda efetiva e a pressão política.
Naturalmente, também senti desejos de escrever algo, pois, ao problema do mal, dediquei uma parte importante da minha reflexão e um bom punhado de trabalhos. Por ventura, o fato de estar acabando um livro a respeito, e sobretudo a reação tão positiva que se percebia por todas partes fizeram com que me conformasse em ver e saborear o claro avanço que se produziu nas reações. Apesar de tudo, não me abandonava minha velha suspeita que algo faltava.
Tudo isso é verdade, mas o terremoto não o produzimos, e sem ele, o problema teria desaparecido pela raiz: por que Deus não o evitou? Latet anguis in herba, pensava, "a víbora segue oculta entre a erva".
"Mistério" - acabam respondendo em geral os artigos. Mas, mistério por quê? Mistério real ou contradição produzida pelas nossas ideias e pressupostos? Milhares de homens e mulheres estiveram no Haiti, renunciando o sonho e expondo a vida para ajudar as vítimas. Se na sua mão estivesse a possibilidade de evitar previamente o terremoto, haveria sequer um só que deixaria de fazê-lo?
No entanto, muitos crentes e teólogos seguem dando por certo que Deus sim poderia, mas que não o faz; mas, sendo onipotente, isso, definitivamente, significa que não quer. Outros, menos, atrevem-se a dizer que não pode; mas então que "deus" é esse, e quem poderá dar-nos esperança?
Epicuro já o tinha perguntado há muitos séculos. E, como era de se esperar, a víbora levantou a cabeça. Martín Caparrós, no El País, 07/02/2010, sem aludir ao famoso dilema - talvez sem sequer conhecê-lo - e referindo-se primeiro ao terremoto de Lisboa (1755), afirma com todo rigor: "A existência -a insistência- do mal fazia com que esse deus fosse um ineficiente ou um vicioso: ou o fazia à vontade e era o maior canalha, ou não podia evitá-lo e era um perfeito inútil".
E depois, dando um salto, irrita-se falando do Haiti: "Portanto, apesar do mal descontrolado - apesar de terremotos e de fomes, massacres e tsunamis -, milhões seguem ajoelhando-se diante de um deus que o faz ou o permite. E, para completar, ainda o anunciam. Para mim, tudo muito estranho. Se eu achasse que esse deus existisse - se achasse que em algum lugar do infinito existe um ente todo-poderoso que não usa seu poder para impedir estes desastres -, se eu achasse que há um deus tão mau caráter para matar de uma vez cem mil mortos de fome, e se esse deus fosse meu deus, meu amo, não tentaria protegê-lo: passaria a vida negando-o, dizendo a todo o mundo que não há tal coisa. O que é isso? Deus? Um deus, o que isso significa? Frente a desgraças como esta, o verdadeiro crente não tem mais remédio que fingir-se ateu - e, talvez, vice-versa. Portanto, é preciso duvidar de quase tudo, como sempre".
Hesitei em reproduzir um texto tão abrupto. Quero pensar que ao escrever deus com minúscula e colocar o condicional - "se eu achasse que esse deus existisse" - se está atacando um ídolo. Em todo caso, o afirmo eu. E, não sem lamentar essas expressões que podem ferir tão brutalmente a fé dos crentes, quero tomá-las como um sério e urgente aviso para a teologia.
O tenho repetido muitas vezes: é preciso desfazer com rigor crítico o dilema de Epicuro, descobrindo sua armadilha e mostrando sua falsidade. Em tempos de religiosidade comum e compartilhada, a fé em Deus podia sustentar-se, apoiando-se em uma confiança radical que era capaz de desafiar a lógica, porque pressentia que esta tinha que falhar em algum ponto. Isso já não é possível em nossa "era crítica".
Devemos reconhecê-lo, se não por honestidade intelectual, pelo menos porque nos reprova com argumentos contundentes: crer em um "deus" que, podendo, não quisesse acabar com o mal do mundo ou que, querendo, não pudesse, torna-se hoje simplesmente impossível.
Por sorte, a mesma agudeza crítica da modernidade abre o caminho da resposta. A autonomia das leis que regem o funcionamento do mundo e as inevitáveis contradições da finitude, fazem com que o conceito (não a fantasia) de um mundo sem maldade seja tão contraditória como um círculo-quadrado. O dilema de Epicuro tem uma armadilha: substitua-se “mundo-sem-maldade” por “círculo-quadrado” e tire a prova; ou pergunte-se, como, às vezes, faço em minhas explicações, se Deus pode ou não pode dividir a sala em “três-metades”.
Não é que Deus "não queira" ou "não possa", mas simplesmente a pergunta carece de sentido. Deus quer o bem, unicamente o bem, para o bem e a felicidade nos cria.
Falemos humanamente: poderia não haver criado o mundo, e sabe que, se o cria, terá que ser finito (se não, se criaria a si mesmo). Em consequência, a imperfeição, a carência, o conflito - o mal - o acompanharão como uma sombra terrível.
Mas a experiência religiosa mais profunda intuiu sempre que se Deus criou, é porque valia a pena; que Ele, como Anti-mal de amor infinito, acompanha e sustenta nossa aventura, convocando-nos a colaborar com Ele no trabalho do amor e a justiça; e sempre, assegurando o sentido e abrindo a esperança.
Contra o que na superfície pode parecer, nada é menos "moderno" do que deduzir o ateísmo da existência do mal no mundo. Seria desconhecer a autonomia de suas leis e a dignidade de nossa liberdade. A bobagem do tele-evangelista Pat Robertson, esclarecendo que o terremoto do Haiti que não tem nada que ver com as placas tectônicas, porque é um castigo divino, fez um grande favor à inteligência.
No mesmo jornal, Galeano o lembra, e Jared Diamond avisa, - permita-me recordá-lo para que o humor adocique um pouco o horror - que "quando o tele-evangelista Pat Robertson diz que a ira de Deus caiu sobre eles se esquece que é a mesma que cai sobre a Itália, EUA ou o Japão, a mesma ira que deveria cair sobre ele por ser tão estúpido". E, mantenhamos o tom, também sobre nós, se seguimos mantendo teologias que dão pé a tanto mal-entendido.
______________________________________*Andrés Torres Queiruga. teólogo espanhol, com vários livros traduzidos para o português, em artigo publicado no sítio Religión Digital, no dia 10-02-2010.
A tradução é de Vanessa Alves.
FONTE: IHU/Unisinos online, 12/02/2010
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=29777
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