Entrevista - Jung Mo Sung
A Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE) 2010 que tem como tema “Economia e Vida” e lema “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” será lançada em âmbito nacional no dia 17 de fevereiro, quarta-feira de cinzas. A proposta é promover, durante o tempo da quaresma, reflexões sobre temas que interferem diretamente na vida da população. A iniciativa visa ajudar os cristãos e as pessoas de boa vontade a viver a fraternidade, em compromissos concretos, no processo de transformação da sociedade.
O tema deste ano é uma proposta do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic), do qual a Igreja Católica faz parte, e que pela terceira vez participa da iniciativa inaugurada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1964.
O economista e teólogo Jung Mo Sung, professor da Universidade Metodista de São Paulo, elogia a iniciativa do Conic. Ele considera a Campanha um importante canal de conscientização e de construção de práticas econômicas mais justas que visem ao bem comum.
Como o senhor avalia a decisão das Igrejas cristãs de promover a Campanha da Fraternidade Ecumênica com a discussão de temas econômicos?
Penso que foi uma excelente decisão. Na verdade, esta CF não é para discutir temas econômicos, mas sim a relação entre economia e vida. É claro que, para debatermos esta relação, precisamos falar de temas econômicos. Mas, eu penso que é fundamental não perdermos de vista que o foco da CF é a relação economia e vida.
Existe compatibilidade entre religião e economia, o que tem a ver uma com a outra?
Há um campo que faz ligação entre a religião e a economia: a vida. E a vida humana não é possível sem a economia, que trata das questões de produção dos bens econômicos necessários para se viver. Por isso, o tema da CF deste ano é economia e vida.
A doutrina cristã propõe uma ética para a atividade econômica no cotidiano das sociedades. Como se dá essa relação?
Para a tradição bíblica, o cristianismo em particular, a economia é ou deveria ser tema central da doutrina e de práticas pastorais. Desde o início, a Bíblia nos ensina que a vida é o maior dom que recebemos de Deus, e as pessoas se mantém vivas em constante “luta” para vencer situações de morte, como a fome, o frio, as doenças, a violência etc. Por isso os profetas insistiam que o verdadeiro culto que Deus quer é que se faça justiça a favor dos pobres e Jesus veio para que todos nós tivéssemos vida e vida em abundância (cf. Evangelho de São João 10,10). Ele nos ensinou que o critério do julgamento final será como nós tratamos as pessoas com fome, frio, doença, sem moradia ou trabalho etc. A salvação passa pela economia e a compaixão.
O senhor acredita na possibilidade desta Campanha sair do âmbito do idealismo e vir a influenciar diretamente a vida prática do cidadão e da comunidade?
Os objetivos das CFs estão em vários níveis. Um deles é levar as comunidades cristãs a discutirem temas fundamentais para a vivência da nossa fé e assim ampliar e aprofundar a consciência sobre esses temas. Essas discussões se dão geralmente em dois pólos: a visão do que deveria ser, o ideal, e a análise do que é real hoje. O ideal serve para iluminar o que temos de bom e de mal na nossa sociedade; ao mesmo tempo em que o senso de realidade nos mostra que nem sempre o que desejamos é possível no momento ou no futuro próximo. É preciso manter esta tensão entre o que deveria ser e o que é, para produzirmos reflexões do que pode ser modificado para tornar a vida do povo melhor. Em segundo lugar, é claro que as CFs devem motivar as comunidades e indivíduos a se engajarem em práticas e ações que de fato modifiquem a vida concreta das pessoas e da sociedade. Mas, nem sempre isso é fácil. O importante é que os diálogos que surgem na época da CF não terminam com a Páscoa e que se faça algo de concreto.
É possível concretizar a proposta de uma economia fundamentada em pilares como justiça social e solidariedade no sistema capitalista atual?
De forma simplificada, diria que não é possível fazer da justiça social e da solidariedade dois pilares do capitalismo. Mas não quer dizer que não possamos aumentar o nível de justiça social e solidariedade dentro do atual capitalismo.
Como conciliar lucro e justa remuneração?
Teoricamente é possível conciliar o lucro com a justa remuneração do trabalho dos empregados. Neste caso, o lucro seria a remuneração justa do investimento e do risco assumido pelos investidores, no caso do capitalismo, os capitalistas. O problema está em definir no que consiste esta “justa remuneração”, seja do trabalho ou do capital. Além disso, no mundo real, as relações econômicas e sociais sempre se dão entre pessoas e grupos com poderes políticos e econômicos, conhecimentos e informações desiguais. Assim, sempre há desigualdade no estabelecimento de contratos, seja nas relações de trabalho, seja nas comerciais e financeiras. Isso quer dizer que é impossível superar todas as formas ou relações de injustiça. O que podemos e devemos é sempre estar alertas e lutar contra as injustiças que ocorrem.
A exploração do outro é um mal necessário para a construção material das civilizações?
Teoricamente a exploração do outro ou a existência de injustiça não são necessárias para a construção e a manutenção das civilizações. Porém, para que uma coletividade construa uma civilização, que signifique a construção de infraestruturas e edificações, a produção de cultura, como arte e religião etc, é preciso que haja concentração de riqueza para esses gastos e investimentos. O problema está na forma de se concentrar a riqueza, em quem a controla e como se fazem os gastos e se distribuem os benefícios. A história nos mostra que esse processo sempre se deu de forma injusta e exploradora. Teologicamente falando, é o pecado. O mal habita nos corações humanos e nas relações sociais e sempre tenta as pessoas a usarem o poder e as riquezas em benefício próprio. Geralmente esses poderosos se utilizam da religião para justificar a opressão em nome de Deus. A Bíblia chama esse processo de idolatria: a adoração aos falsos deuses ou a manipulação do nome de Deus para justificar as injustiças e os sacrifícios impostos sobre o povo. É por isso que Jesus denuncia: “Não se pode servir ao mesmo tempo a Deus e ao Mamón” (riqueza vista como deus).
Na realidade brasileira há exemplos que apontam para a possibilidade real de construção de uma economia firmada em valores de fraternidade?
Eu penso que há no Brasil iniciativas e práticas econômicas, assim como projetos sociais, baseados sim em valores que expressam a fraternidade e a solidariedade. Projetos de economia solidária são exemplos disso, mas eles vivem à margem do sistema econômico. Por isso, não podemos tirar desta constatação a conclusão de que estamos construindo um sistema econômico baseado na fraternidade. Em outras palavras, o sistema econômico brasileiro é um subsistema dentro do sistema capitalista global. E embora precisemos continuar lutando para ampliar espaços de relações econômicas e sociais fundadas nos valores de fraternidade e solidariedade, não podemos cair no erro ou na ilusão de que estamos com isso, construindo um novo sistema econômico mundial.
Pelo Evangelho sabemos que os primeiros cristãos repartiam os bens com igualdade, mas era a minoria. Experiências semelhantes de economia solidária também ocorrem em pequenos grupos. Numa escala mais ampla de país, ou mesmo global, esta proposta de modelo econômico seria viável?
Precisamos esclarecer duas coisas em relação à comunidade de Jerusalém. Quando o livro dos Atos dos apóstolos diz que todos na comunidade tinham tudo em comum, está expondo o projeto da comunidade que nasce da fé na ressurreição de Jesus e não uma descrição do funcionamento da comunidade. Logo após o anúncio do projeto sócio-econômico baseado na fé, Lucas nos diz como havia problemas no interior da comunidade. O primeiro foi a mentira de Ananias e Safira, depois a queixa dos helênicos porque as viúvas hebréias tinham privilégio na distribuição dos bens. Depois veio a fome da comunidade, porque os bens para distribuição acabaram. Não se pode pensar na distribuição de bens sem pensar também no sistema de produção. Em segundo lugar, precisamos nos lembrar que o projeto da comunidade de Jerusalém era vivido às margens do mercado do Império Romano.
Há pontos comuns entre a relação das comunidades cristãs com o mercado romano e das atuais iniciativas de economia solidária com o capitalismo global?
Hoje em dia, os projetos de economia solidária têm um papel similar ao da comunidade de Jerusalém, que é o de criar espaços de vida mais digna e de criticar o sistema econômico-social-político, opressivo dominante. O desafio para todos nós é: como criar um novo sistema global tendo como inspiração essas experiências de solidariedade? Não é possível simplesmente querer projetar no nível global o que é feito nesses pequenos projetos. Precisamos ser criativos e corajosos para criar um novo sistema econômico que deve ter, na minha opinião, como seu objetivo fundamental, não o consumo equitativo de bens, mas sim uma realidade social em que todas as pessoas possam ter acesso aos bens necessários e oportunidades para uma vida digna e livre.
Que avaliação o senhor faz da atual política econômica brasileira? Muitos especialistas criticam o assistencialismo para com os pobres e falta de preocupação com a inclusão deles no mercado de trabalho.
Penso que precisamos reconhecer que o atual governo, mesmo com todas as limitações e problemas, modificou significativamente a realidade social com programas que aumentaram a renda dos setores mais pobres da população. Alguns programas são de fato assistencialistas, mas há situações em que não se pode, a curto prazo, fazer muito mais do que isso.
A inclusão dos pobres no mercado de trabalho é que continua sendo um grande desafio, apesar da criação de muitos empregos formais. Mas, isso também não é algo que dependa exclusivamente do Governo e do Brasil, pois depende da economia nacional e mundial.
Partindo da proposta da Campanha da Fraternidade 2010, quais caminhos poderiam levar à concretização de uma economia que tenha como fundamento a valorização da vida humana?
A criação de uma sociedade em que todas as pessoas possam viver dignamente não depende, exclusivamente, de uma nova economia. Uma das características do neoliberalismo é reduzir toda discussão sobre questões sociais ao campo da economia e não podemos cair nessa armadilha. Precisamos de um sistema econômico que reconheça que a economia deve estar em função da produção de bens necessários para a vida de toda a humanidade e que respeite os limites da natureza. Mas, nenhum sistema econômico por si só fará isso, por mais que diga que fará. É preciso que haja pressão, controle e direção por parte do Estado e da sociedade civil. E para que a sociedade pressione o Estado e o mercado, é preciso que os valores fundamentais que formam a cultura dominante sejam marcados pela defesa da vida dos mais fracos. Neste campo, o cristianismo tem um papel importante a cumprir e espero que a CF possa colaborar nesta missão.
________________________________Reportagem Mônica Bussinger
Fonte: Jornal de Opinião ed. 1079 - de 15 a 21/02/2010 - Pág. 4 e 5
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