Flávio Tavares*
A rotina nos anestesia e, na repetição, cria a ilusão de estável normalidade. Podemos estar diante do precipício mas, acostumados a vê-lo a cada minuto, não temos ideia da queda que nos espera se dermos um passo à frente. Nada é mais perigoso do que os hábitos que se apoderam de nós como oculto invasor noturno, que não percebemos nem notamos que nos assalta e nos domina.
Nada mais benéfico, portanto, que nos puxem pelo braço e nos mostrem o abismo, como fez agora a Campanha da Fraternidade, ao chamar a atenção para a devastação ética e comportamental criada pela ambição exibicionista da sociedade de consumo. Ou do consumismo como ideologia e norma de vida.
Originalmente promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) da Igreja Católica, juntaram-se à campanha as igrejas Evangélica de Confissão Luterana, Anglicana, Presbiteriana, Cristã Reformada e Ortodoxa de Antioquia, no arco que integra o Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil. O lema neste ano é um versículo do Evangelho de Mateus, ao difundir o pensamento de Cristo: “Não podemos servir a Deus e ao dinheiro”. O bispo de Rio Grande, dom José Mário Stroher, presidente regional da CNBB, resumiu a reflexão crítica da campanha: “Tudo entre nós está a serviço do consumo; dos bens às drogas tudo virou instrumento do dinheiro para concentrar ainda mais dinheiro, transformando o ser humano num predador”.
O meio ambiente é a primeira vítima desse frenesi consumista, em que só o que multiplique cifrões é visto como normalidade. Rios degradados pela poluição industrial, ar infectado pelos gases, alimentos contaminados por agrotóxicos, nada dessa pestilência importa se gerar lucro!
Está em jogo, porém, a obra fundamental da Criação – a vida. Ou a natureza que permitiu o desenvolvimento da vida. Assim, nada mais natural que as igrejas critiquem um estilo de vida que cultiva o hedonismo e, em consequência, desemboca na extinção da vida em si.
No fundo, as igrejas cristãs fazem uma crítica profunda do modelo de capitalismo predatório e consumista que entrou pelo século 21 com ímpeto especulativo sem limites (a crise financeira de 2008, que ainda não terminou, mostrou o que é a especulação). Não se trata de ação oportunista para ocupar o espaço que a medíocre política partidária abandonou. Há muito a Igreja desconfia do capitalismo e o vê com olhos críticos: na Idade Média, a usura era um pecado terrível e os usureiros da época eram os banqueiros de hoje.
No início do século 20, um sacerdote alemão percorreu o interior do Rio Grande (em lombo de mula) fundando cooperativas de crédito entre os pequenos agricultores. As “Volkskassen” orgulhavam-se de não terem lucro, ou de lucro ínfimo, indispensável apenas a reinvestimentos de socorro à lavoura. Algumas dessas “caixas populares” cresceram (como o Banco Agrícola e Mercantil, fundado em Santa Cruz) e foram abocanhadas por grandes bancos. A concepção do crédito mudou, então, e passou a enriquecer os bancos.
O escândalo brutal, porém, é o do consumismo em si, que torna obsoleto amanhã o computador ou o telefone celular comprado hoje. E, na orgia desenfreada, o menino pobre de rua mata para roubar o tênis “de marca” de outro guri como ele. Nesse turbilhão, uns devoram aos outros. Os marginais nos tiroteiam no semáforo ou em nossas casas. Os corruptos da política já roubam diretamente, filmados pela TV.
Venha de onde vier, todo dinheiro vai para o altar do novo deus. O deus da nova religião fanática, o consumismo.
________________________* Jornalista e escritor
FONTE: ZH online, 21/02/2010
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