Delfim Netto*
Com alguma frequência, ouvimos ultimamente manifestações da crença de que o (combalido) dólar, em breve, deixará de ser a moeda reserva universal. Uma nova moeda, mais forte, ocupará o seu lugar. O problema é que os desafiantes citados não resistiram aos primeiros testes. E ninguém arrisca uma data para a morte anunciada da moeda norte-americana. Trata-se, a meu ver, de uma esperança vã.
Moeda é questão de confiança. O dólar não chegou a ser a unidade-padrão do comércio internacional simplesmente porque os americanos decidiram que ele ia ser a moeda universal. Passou a ser a moeda reserva do mundo, aceita universalmente, depois de a libra esterlina, após muitos anos, ter começado a sofrer uma intensa desvalorização no período posterior ao término da Primeira Guerra Mundial, nos anos 20 do século passado.
De fato, somente após a Segunda Guerra Mundial, terminada em 1945, o dólar fixou-se como a unidade de medida, a moeda reserva mundial, porque as pessoas passaram a ter confiança nele. Isso se mantém nos dias de hoje, mesmo com os abalos no sistema financeiro dos EUA. Qualquer coisa que aconteça, uma pequena turbulência que seja no mercado internacional, a fuga é para o dólar. O operador que precisa manter suas posições, que precisa de proteção, só pode refugiar-se na moeda que tiver poder liberatório universal.
Acho muita graça nessa ideia de que o euro substituirá o dólar. E mais ainda, de que será a moeda chinesa, o yuan. Ora, o yuan é produto da autoridade do Partido Comunista Chinês. Quem fará os seus depósitos fiado nessa garantia? Quem vai fazer suas cotações com base no yuan em um próximo futuro? Quem garante que a moeda chinesa terá conversibilidade e adquirirá um poder liberatório universal? A própria China se garante comprando títulos do Tesouro norte-americano e aumentando o estoque das matérias-primas que precisa importar.
Chega a ser um tanto ridículo imaginar que o dólar vai desaparecer daqui a pouco, daqui a um ano ou meio ano. É possível acreditar que ele será substituído um dia, depois de erodido por muitos anos por outra moeda talvez ainda inexistente. Pode até ser o yuan, lá pelo século XXII ou, na melhor hipótese, por uma moeda fictícia construída num acordo internacional, pelo qual todos os países concordarão em depositar suas reservas. Isso vai acontecer provavelmente quando houver um governo mundial, o que certamente não será num futuro muito próximo.
Os Estados Unidos, desde praticamente a Segunda Grande Guerra, foram uma espécie de governo mundial. Pelo menos agiram como se o fossem em inúmeras circunstâncias. Agora passam por uma turbulência criada pelas artes de seu sistema financeiro, ora sob suspeita.
Não chega a ser, porém, uma novidade. Basta analisar as razões pelas quais se aprovaram leis como a Glass-Seagal, com aqueles controles formidáveis sobre o sistema bancário, durante a Grande Depressão, iniciada em 1929. Foi quando o famoso Relatório Pecora, elaborado após longas inquirições (e tendo obtido a confissão de proeminentes banqueiros) comprovou as patifarias praticadas no mercado financeiro por quase toda a década dos 20, sob a vista complacente da autoridade.
Se olharmos bem, as razões foram as mesmas mencionadas hoje. E é por isso que eu costumo dizer que, se for deixado livre, contando com a leniência dos controles, o sistema financeiro sempre volta ao local do crime. Não tenhamos dúvida, contudo, que ele terá de aceitar algum tipo de controle e estará sujeito à fiscalização rigorosa, pelo menos por um bom tempo. Novos xerifes foram chamados e logo aparecerão os resultados.
Mesmo capaz de se renovar, a cultura inescrupulosa de agentes financeiros de Wall Street não tem produzido estrago bastante para que se retire a confiança no dólar. Acabamos de ter uma prova disso nas últimas duas semanas, quando turbulências nas finanças de Portugal, Grécia, Irlanda e Espanha, de média intensidade, provocaram um movimento, uma fuga, do euro bastante forte. E para onde? O refúgio continua sendo o dólar.
É o que reforça a crença que vai neste comentário. Qualquer dor de barriga, mesmo ligeira, faz com que todos corram ao mesmo endereço: no caso, o Tesouro norte-americano...
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*Delfim Netto. Economista. Professor. Colunista de vários veículos de comunicação.
Fonte: Carta Capital online, 19/02/2010
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