sábado, 27 de fevereiro de 2010

Apontamentos sobre Blade Runner (I)

Cassiano Terra Rodrigues*

O que mais falar sobre Blade Runner – O caçador de andróides (Blade Runner, dir. Ridley Scott, EUA, 1982)? Considerado por muitos como a realização máxima do cinema pós-moderno, esse filme que parece interminável (já foram divulgadas nada menos do que sete - 7! - versões diferentes suas) ainda é capaz de mobilizar muito pensamento crítico. Os apontamentos que apresentamos a seguir são necessariamente inconclusivos e não exaustivos. Com eles, objetiva-se unicamente suscitar algumas questões, mais do que respondê-las.

Para melhor compreendê-las, é útil resumir o enredo e destacar os diferentes finais do filme. Ambientado em uma imaginária Los Angeles, num futuro próximo, 2019, o filme conta a história de um grupo de "replicantes", ou andróides "virtualmente idênticos" aos seres humanos, criados pela bioengenharia genética para serem escravos fora do mundo (Off-World) na exploração e conquista de colônias espaciais. Um grupo deles, formado por seis replicantes da geração Nexus 6, "superiores em força e agilidade e ao menos tão inteligentes quanto os engenheiros genéticos que os criaram" – volta ilegalmente à Terra para exigir mais tempo de vida, inconformados com sua curta existência programada de quatro anos. Dois morrem numa tentativa de invadir a Tyrell Corporation, a companhia que fabrica os replicantes. Rick Deckard (Harrison Ford, provavelmente no melhor papel de sua carreira) é o blade runner, o caçador de andróides do título nacional, convocado para descobrir os replicantes sobreviventes e matá-los – ou "aposentá-los".

Roy Batty (Rutger Hauer, em esplêndida interpretação como o líder dos replicantes), Leon Kowalski (Brion James), Pris (Daryl Hannah) e Zhora (Joanna Cassidy) são seus alvos. Ao longo do filme, Deckard acaba se apaixonando por Rachael (Sean Young), uma replicante diferente, sem tempo programado de vida, com memórias implantadas e que inicialmente não sabe ser uma replicante. Depois de eliminar os outros replicantes, Deckard se une a Rachael para enfim viverem seu amor. Há dois finais diferentes: nas versões comercialmente distribuídas do filme em 1982 (nos EUA e internacionalmente), os dois fogem para a natureza, numa estrada de florestas e montanhas; nas versões remontadas pelo diretor, esse final está ausente. A versão do diretor também deixa de fora a narração em voice-over de Deckard, além de incluir algumas outras cenas. Uma delas, a de um sonho de Deckard com um unicórnio, lança maior ambigüidade sobre se Deckard é ele mesmo um replicante ou não.

Tema 1. Feminismo

As principais personagens femininas são todas artificiais – replicantes – e sexualizadas pelos homens à sua volta. Isso dá significado completamente renovado à expressão "mulher-objeto", já que as mulheres no filme ou são todas manufaturadas ou não aparecem. E por isso são tão fascinantes e sedutoras – mostram-se, escondendo-se; parecem ser o que não são, não são o que parecem; frequentemente associam sexo a violência ou a proibição.

Pris é um "modelo básico de prazer". Possuidora de um ar infantil dissimulador, mostra-se violentíssima ao atacar Deckard;

Zhora se torna uma dançarina erótica, com uma cobra (um símbolo fálico e demoníaco). Para se aproximar dela, Deckard se diz inspetor do "Comitê Confidencial contra Abusos Morais" e pergunta se ela foi "explorada" de alguma maneira, obrigada a fazer qualquer coisa de "lascivo, imoral ou repugnante para a sua pessoa";

Rachael é uma replicante com memórias implantadas da sobrinha do dr. Eldon Tyrell (Joe Turkel), dono e cabeça científica da Tyrell Corporation, a fábrica dos replicantes. Ela é totalmente ambígua: secretária, femme fatale, pode ser entendida como a mulher-objeto por excelência – umas das questões no teste Voight-Kampff parece colocar em questão sua sexualidade: "Esse teste é sobre se sou uma replicante ou uma lésbica, Sr. Deckard?" Dependendo da visão que se tenha dos replicantes, ela pode ser ou o objeto de amor ou o interesse do amor de Deckard.

A sobrinha de Tyrell é uma personagem que não aparece – a mulher real é inexistente, embora tenha sido necessária para dar memórias ao seu simulacro;

A atmosfera de filme noir contribui para o retrato das mulheres no filme com o estereótipo das mulheres perigosas, sem sentimentos, desonestas, sexualizadas e mortais. No cinema noir, esse estereótipo tinha a ver com uma questão de gênero – uma reação ao papel das mulheres na sociedade em mutação depois das Guerras Mundiais.

J.F. Sebastian (William Sanderson), o engenheiro genético, é fascinado pela sexualidade de Pris, uma Zhora nua ataca Deckard em um momento de distração, e há também o amor proibido por Rachael. Há certa misoginia no caçador de andróides – Pris e Zhora podem ser vistas como mulheres fortes, independentes e não subservientes que são mortas, enquanto Rachael é o oposto disso tudo e sobrevive. Também é possível argumentar que o uso de mulheres como vítimas pretende atrair a empatia ou a compaixão do público (como se a platéia estivesse sendo submetida a um teste Voight-Kampff) e, além disso, pode ser vista como uma crítica pós-moderna do arquétipo do filme noir. Nessa visão, o filme mostra que a mulher fatal clássica morreu, numa possível crítica à representação das mulheres nos filmes de Hollywood.

Tema 2. Olhar
O tema da visão e do olhar é muito marcante no filme.

Nos primeiros segundos já se mostra um olho que reflete a paisagem e as chamas da Los Angeles de 2019. Segundo o roteiro, é o olho de Holden (Morgan Paull), um caçador de andróides atacado no início do filme pelo replicante Leon.

O teste Voight-Kampff consegue detectar contrações involuntárias na íris que permitiriam diferenciar um ser humano de um replicante.

O Dr. Eldon Tyrell – o gênio responsável pelo projeto dos replicantes – é mostrado como uma figura de aspecto divino, com poder supostamente total sobre a vida dos replicantes. Seus óculos são exagerados – na maioria das cenas, eles têm um efeito de lente de aumento sobre os olhos de Tyrell, fazendo com que pareçam maiores do que são. Mas, notemos, instado por Roy a aumentar o tempo de vida dos replicantes, ele se diz incapaz de fazê-lo.

Os olhos são uma fonte de atração muito forte para os replicantes. Sua forma de matar predileta é furando os olhos das vítimas. Nossa cultura entende que os olhos são as janelas da alma para o mundo exterior; os olhos confirmam nossas existências como observadores conscientes e sentimentais, pelo olhar nos comunicamos e trocamos emoções. Na sua busca por longevidade, os replicantes brincam com olhos – no laboratório do cientista Chew (James Hong), Roy diz a Chew: "Eu vi coisas com os seus olhos" – isto é, os olhos que você fabricou – "que você mesmo nem imagina". Há também o efeito cinematográfico – só perceptível pela platéia, não pelos personagens no filme – que faz com que os olhos dos replicantes tenham um brilho diferenciado, criando certo aspecto de artificialidade.

Os olhos da coruja, na versão do diretor, constituem imagem fortíssima: conforme a posição, parece que os olhos da coruja são de vidro, mostrando ela ser um animal artificial; conforme ela se move, eles mudam de cor e de aspecto, reforçando a impressão de que é difícil estabelecer limites definidos entre real e irreal, entre ilusão e realidade, o que se vê e o que de fato é.

Na cena em que Roy conta a Deckard o que foi que viu fora da Terra, em certo momento Deckard fecha bem os olhos e demora um instante a mais para reabri-los, para ver Roy morrer em sua frente. As palavras do replicante repetem o moto já dito a Chew e acrescentam: "Vi coisas que vocês, pessoas, não acreditariam. Naves de ataque em chamas fora da borda de Orion. Assisti a faróis brilhando no escuro perto do portal de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Tempo de morrer." O tempo da morte coincide com o cerrar dos olhos, como se a memória não fosse possível sem a visão.

Não podemos também nos esquecer da cena em que Deckard esquadrinha eletronicamente a fotografia que ele encontra no apartamento de Leon (Brion James) – uma referência clara, ao juízo deste escritor, a Blow Up – Depois daquele beijo, de Michelangelo Antonioni. No filme do diretor italiano, o procedimento de ampliação da imagem fotográfica serve à personagem do fotógrafo como revelação de uma realidade antes despercebida; no entanto, a ambigüidade permanece: que é que se vê na imagem afinal? É ela signo do real ou não? Em Blade Runner, temos um processo parecido, mas não só de ampliação da imagem, como também de descobrimento de camadas ocultas na imagem, só passíveis de serem vistas por um procedimento eletrônico que simultaneamente esquadrinha e amplia essas camadas. O aparelho eletrônico parece nos levar a ver por trás das imagens em primeiro plano dentro da fotografia – somos levados ao íntimo de uma realidade virtual construída, conseguimos ver de ângulos internos, como se a fotografia não tivesse somente dois planos, mas também profundidade real. Mas, no fim, trata-se de uma fotografia – o que é o real? Qual a diferença entre o real e sua representação imagética? Será a nossa relação com o real legítima sem a mediação de uma imagem tecnicamente produzida?

Essas perguntas já podiam ser feitas em 1966, como nos mostrou Antonioni. Mas, se, como dizia Walter Benjamin, o aparelho técnico moderno ampliava a percepção, modificando e fazendo-nos questionar nossa compreensão da realidade, no filme de 1982 a pergunta parece mudar um pouco: que tipo de experiência humana é possível ter nesse mundo tecnológico de virtualidades tão enganadoras e tão convincentes quanto a própria realidade – tecnologia criada pelos próprios humanos para reproduzir não o real, mas seu simulacro? Se Blow Up ainda sugere uma linha de fuga para o imaginário e o onírico, Blade Runner parece advertir que os sonhos da razão podem resultar em um mundo bem menos lúdico que o dos clowns...

A relação entre o humano e o não-humano é central no filme – como saber quem é replicante ou não? O teste Voight-Kampff é infalível? Os replicantes nos fazem perguntar "podemos confiar na nossa tecnologia"? Há o não-humano que criamos e o não-humano que não criamos – teremos chegado ao ponto de não mais conseguirmos nos diferenciar de nossos artefatos? Ou ainda: será a vida unicamente possível por simulacros e artefatos tecnológicos? Teremos de recusar toda ambição a um contato genuíno com o mundo real? Estará a nossa civilização fadada ao auto-aniquilamento por causa de seu próprio progresso?
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*Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia no Centro Universitário - SENAC-SP, Colégio I. L. Peretz e é pesquisador do Centro de Estudos do Pragmatismo, na PUC–SP.
Fonte: Correio da Cidadania online, 20/02/2010

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