José Goldemberg*
Existem no mundo hoje cerca de 700 milhões de automóveis, um para cada dez habitantes. Nos Estados Unidos já existem quase tantos automóveis quanto pessoas (incluindo as crianças). No Brasil são quase sete pessoas para cada automóvel, mas em 2014 deveremos ter quatro pessoas por automóvel - em outras palavras, cada família deverá ter um automóvel. A China e a Índia são menos motorizadas, mas, mesmo assim, prevê-se que dentro de 20 anos haverá 2 bilhões de automóveis circulando no mundo.
A posse de um automóvel reflete as aspirações de boa parte da população mundial, para a qual eles representam a liberdade de ir e vir. Sucede que um mundo totalmente motorizado terá de enfrentar problemas muito maiores do que os que enfrentamos hoje: congestão urbana, poluição, acidentes, expansão da rede de estradas e o fato de que os combustíveis que usamos hoje não deverão durar mais de 40 anos - antes disso, seu custo aumentará substancialmente.
Apesar disso, muitos governos encorajam a motorização, entre os quais o do Brasil, que até reduziu os impostos sobre automóveis para encorajar as vendas, sem exigir das montadoras nenhuma contrapartida, como a de melhorar os padrões de desempenho desses veículos. Nos Estados Unidos essa exigência foi feita como precondição para o governo salvar a indústria automobilística da bancarrota.
A China está revelando preocupações com a tendência à motorização do país, que ainda é pequena (29 pessoas por automóvel), e está iniciando a instalação de uma rede de ferrovias com trens rápidos - do tipo TGV francês (train à grande vitesse ou, em português, trem de alta velocidade) - que vai cobrir todo o território chinês (9.596.960 km2), que é maior que o do Brasil (8.514.876,599 km2). A China, por meio de uma decisão política, tenta seguir o modelo europeu de ênfase ao tráfego ferroviário.
São muitos os exemplos que se poderiam citar dos problemas que uma sociedade orientada para o consumo vai criar para a grande maioria da população mundial, no futuro.
Poder-se-ia argumentar que os Estados Unidos conseguiram se tornar o paraíso do consumismo que são hoje e que a tendência é imitá-lo. Acontece que a população dos Estados Unidos é de apenas 4% da população mundial e se consome lá um quarto de toda a energia produzida no mundo. Em outras palavras, não existem no mundo recursos de energia e minerais suficientes para que uma população mundial 25 vezes maior que a dos Estados Unidos adote seus padrões de consumo.
Por outro lado, não existe a menor dúvida de que o restante do mundo não aceitará viver com menos conforto que os americanos e que uma sociedade de consumo de algum tipo acabará por se impor.
Assim sendo, o que fazer?
Negar o progresso econômico é impossível, mas o fato é que políticas públicas podem orientar esse progresso e existem novas tecnologias - que não existiam há 50 anos - que permitem fazê-lo. Ninguém, em sã consciência, vai negar o direito de as pessoas terem acesso a uma iluminação decente à noite, mesmo que morem numa favela. Hoje, no entanto, existem lâmpadas que iluminam tão bem (ou melhor!) e usam dez vezes menos eletricidade, além de durarem mais tempo do que as antigas. Esse é só um exemplo de tecnologias mais eficientes, das quais existem muitas.
Nos países em desenvolvimento, cuja população está crescendo - e a infraestrutura ainda é incipiente -, a estratégia é crescer adotando essas tecnologias mais eficientes desde o início.
Outra estratégia é a de evitar uma dependência completa do uso de combustíveis fósseis, introduzindo energias renováveis em grande escala, como a dos ventos e a solar. Em alguns casos, as próprias forças do mercado farão isso, porque algumas delas já são competitivas, mas, em outros, políticas públicas são necessárias para fazê-lo.
O sucesso do Programa do Álcool no Brasil se deve a isso. A decisão do governo, décadas atrás, foi a de substituir gasolina por álcool de cana-de-açúcar. A mistura adotada começou com alguns por cento e aumentou para 25%. Muitos outros países estão fazendo isso com misturas menores, mas ainda assim significantes.
É por essa razão que a decisão recente do governo de reduzir a mistura para 20%, por causa da falta de álcool, passa uma mensagem errada. O motivo para essa redução foi mesmo a falta de álcool, que provocou o aumento do seu preço e fez as vantagens econômicas de usá-lo desaparecerem. A medida é temporária e a mistura deve voltar aos 25% no início da próxima safra, mas teria sido melhor reduzir as exportações de açúcar para aumentar a produção de álcool do que reduzir a porcentagem na gasolina.
Políticas públicas não são necessariamente estabelecidas somente por governos. Estratégias adotadas por grandes bancos ou por grandes empresas tornam-se às vezes verdadeiras políticas públicas. Exemplo claro disso foi a criação da "bolha imobiliária" nos Estados Unidos, que levou à crise financeira global de 2008. Grandes bancos facilitaram de tal forma empréstimos imobiliários, exigindo poucas garantias em seus financiamentos, que milhões de pessoas contraíram empréstimos que não podiam pagar. Outro exemplo foi a "bolha de informática" dez anos atrás, quando um entusiasmo irracional por investimentos de risco nessa área levou o setor a uma grave crise. Em todos esses casos, o aumento do controle governamental foi necessário para evitar males maiores.
O que é fundamental são políticas públicas que orientem as forças de mercado, e não simplesmente se curvem a interesses econômicos imediatistas.
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Fonte: Estadão online, 15/02/2010*José Goldemberg é professor da Universidade de São Paulo
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