sábado, 27 de fevereiro de 2010

Livro de Gotlib revela que Clarice Lispector teve uma vida migrante

Antônio Campos, Jornal do Brasil
RIO - Ao chegar ao Recife , com 5 anos, Clarice já viajara muitas milhas: para nascer, obrigou a família emigrante a uma estada na aldeia Tchechelnik, em 10 de dezembro de 1920. Chaya, os pais e as duas irmãs ainda passariam por Bucareste para chegar ao porto de Hamburgo, quando só então atravessariam o Atlântico e chegariam a Maceió em 1922. Fugiam dos progroms, ataques violentos aos judeus, que ocorreram em muitas partes do mundo, antes mesmo da Segunda Guerra Mundial. Na cidade alagoana, exceto Tania, todos da família mudariam de nome, por iniciativa do pai, Pinkouss, que passaria a se chamar Pedro, a mãe, Mania, Marieta, a irmã, Leia, Elisa, e Chaya, Clarice. Mesmo assim, seu sobrenome, Lispector, causaria estranheza aos menos avisados sobre a “flor-de-lis no peito” que ela era.

Singular em suas origens, Clarice acentuaria seu destino emigrante: no Brasil, além de Maceió e Recife, viveu no Rio de Janeiro e Belém do Pará; no exterior, durante 16 anos, transitou entre várias cidades, residindo por períodos mais significativos em Nápoles, Berna, Torquay, Washington.

Portanto, seria difícil fundar uma geografia para a escritora de origem judia se não ouvíssemos ela mesma afirmar: “Morei no Recife, morei no nordeste, me criei no nordeste”. Clarice faz essa afirmativa em entrevista a Júlio Lerner, em fevereiro de 1977, 10 meses antes de sua morte. Justificava assim a tônica de seu romance então inédito, A hora da estrela, que surpreenderia a todos com uma abordagem sócio-regionalista à qual nunca se rendera, mesmo no início de sua carreira, quando em voga. Os críticos já apontavam, nessa época, indícios de um modo de ser mais direto, mais explícito, na sua produção, e Nadia Batella Gotlib sugere que a autora se ficcionalizara em seus últimos trabalhos: deixa de ser apenas a escritora para ser a persona que ela própria criava. A simultaneidade espacial e temporal de seus romances entram em perfeita simbiose com essa perspectiva de sua biógrafa brasileira.

São as declarações dela mesma, em sotaque peculiarmente nordestino, e a abordagem desse seu último romance, A hora da estrela, com protagonistas nordestinos imigrantes no Rio, que permitem apontar a importância de uma geografia fundadora da escritora Clarice Lispector que afirma: “Desde que comecei a ler e escrever eu comecei também a escrever pequenas histórias”. Sua alfabetização se deu no grupo escolar João Barbalho, aos 7 anos de idade. Aos 9, já escrevera uma peça de três atos que escondeu de todos entre as estantes. Revelaria depois: “Era uma história de amor”. Nesse mesmo ano morre sua mãe que, dentre os da família Lispector, foi a maior vítima da violência dos progroms. Já se encontrava, então, no Collegio Hebreo-Idisch-Brasileiro, onde termina o terceiro ano primário. Estuda piano, hebraico e iídiche. Em 1931, ingressa no Ginásio Pernambuco. A “tímida e ousada” Clarice já apresentava seus trabalhos para publicações em jornais locais. Foi recusada muitas vezes, mas não deixava de enviar suas histórias embora nunca tenha sido agraciada com os prêmios concedidos pelo Diário da Tarde; talvez – observa a crítica literária Ermelinda Ferreira – “porque seus textos já focalizassem menos o enredo do que a reflexão”.

A essa altura, as dificuldades financeiras da família já eram menores e mudaram-se do pequeno sobrado da Praça Maciel Pinheiro para uma casa melhor no mesmo bairro. Em 1935, Clarice já estaria em terras cariocas, mas anotava: “Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda. Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes de o sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão?”.

Essa e outras anotações preciosas encontram-se em Clarice: uma vida que se conta, de Gotlib. No entanto, para encontrar a paisagem do Recife no universo ficcional o livro Felicidade clandestina (1971) traz narrativas exemplares, quase autobiográficas, da menina e da adolescente Clarice revisitada pela então mãe de dois filhos, Pedro e Paulo, um casamento desfeito, variados níveis de dificuldades socioeconômicas contrastantes com o reconhecimento internacional que já obtivera, além de graves episódios comprometedores de sua saúde.

“Felicidade clandestina”, “Restos do carnaval”, “Cem anos de perdão” e “Os desastres de Sofia” são narrativas em primeira pessoa povoadas pela arguta menina de 9 anos, que “não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”, ao ter em mãos o primeiro volume de Monteiro Lobato; pela primeira máscara que permitia esconder-se dela mesma; pelo seu professor “grande e silencioso, de ombros caídos”; por rosas roubadas das mansões não frequentadas pela Lispector hoje inserida em todas as geografias indimensionais de seus milhares de leitores no mundo.
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Fonte: Jornal do Brasil online - 26/02/2010

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