sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A Igreja a as crianças

O jornal do Vaticano, L'Osservatore Romano, 17-02-2010, abordou o escândalo dos abusos sexuais desvendados na Alemanha, reproduzindo um artigo do psiquiatra e teólogo Manfred Lütz, diretor do hospital psiquiátrico Alexianer-Krankenhaus, de Colônia.
O artigo foi, originalmente, publicado pelo jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, 11-02-2010.
A tradução é de Alessandra Gusatto.

Eis o artigo.

O abuso sexual de menores da parte de sacerdotes católicos é um crime particularmente repugnante. O sacerdote, de fato, tem um papel paternal perante os menores e, portanto o ato tem em si algo de incestuoso. Arrisca assim perder a confiança basilar na credibilidade das relações humanas, e exatamente a Igreja não pode ficar indiferente enquanto ela é destruída ou ainda a confiança em Deus é gravemente abalada.

Em 2002 a Conferência Episcopal Alemã difundiu algumas diretrizes, com base nas quais todas as dioceses introduziram um procedimento claro. Foram denominados interlocutores para as vitimas, instituídos grupos de especialistas, chamados importantes especialistas alemães para as perícias. Aqui a pertinência religiosa dos especialistas não tinha a menor importância. Há dois anos, já que vieram à tona denúncias contra um padre falecido, a arquidiocese de Colônia se apresentou espontaneamente em público para pedir que as outras vítimas se revelassem. Com sucesso. Também a abertura perante à imprensa, aplicada agora pelo diretor da Kanisius Kolleg em Berlim, segue esta linha.

Reduzindo ao essencial a atual agitação da imprensa alemã, os casos dos anos 1970 e 1980, dos quais se ficou sabendo somente agora, demonstram mais uma vez o quanto sejam importantes as medidas tomadas há alguns anos. Não são verdadeiras novidades. Se o clamor público supera qualquer fronteira, existem motivos sócio-psicológicos. Na nossa “sociedade sem pai”, representada primeiramente por Alexander Mitscherlich, na qual todos recusam as tarefas de ditar regras e de introduzir na história, tarefas que Freud atribuía ao pai, a Igreja católica tem portanto um papel pouco atraente. No vazio deixado pela “falta interna e externa de pais”, a puberdade e o protesto caem no vazio.

A geração de 68 tinha na figura do chanceler federal da época, Kiesinger, um pai emprestado de livros ilustrados. Hoje, os políticos evitam qualquer protesto e, se necessário, estão dispostos a se unirem a uma manifestação de protesto contra si mesmos. Também o pai Estado não existe mais. Sobretudo, os alemães, devotos da autoridade, aos quais foram substituídos para sempre os seus imperadores e os seus líderes, interpretaram este vazio e encontraram na Igreja católica um objeto substitutivo contra quem protestar. Que encabeçando esta Igreja estejam homens, e no controle de tudo o Santo Pai, facilita a projeção de todos os conflitos não vividos com o pai, da puberdade recuperada, de todos os protestos que não tinham destinatário, sobre uma instituição que tem normas e que não nega a sua identidade histórica.

O sexo é o tema preferido da puberdade e, com efeito, quando se trata de agir contra a Igreja, não é raro parecer pubertária a contribuição aos debates de pessoas de resto adultas. Então, para atacar o celibato nem se hesita em recorrer à velha tese machista de que “o sexo é necessário”. Sobretudo, porém, para nós alemães a Igreja católica é muito aptta a nos dispensar de nossas responsabilidades históricas. Quando Papa João Paulo II, no Yad Vashem, encontrou palavras comoventes que suscitaram profunda admiração em Israel, mas também na América, foram os alemães a criticá-lo, pois deveria ter -se desculpado de forma mais direta pela Shoah. Imaginemos: o Papa polonês, também ele uma vítima da ocupação alemã, é convidado pelos alemães a desculpar-se com maior vigor pela culpa alemã! Difficile est satiram non scribere.

Em 1970 o prestigiado sexólogo Eberhard Schorsch em um intervento no Parlamento alemão, sem ter sido questionado declara: “Um menino saudável em um ambiente intacto elabora as experiências sexuais não violentas sem que tenham conseqüências negativas duradouras”. O ambiente de esquerda paparicava os pedófilos. Em 1969, antes de partir para entrar na Rote Armee Franktion, Jan Carl Raspe em seu Kursbuch elogiou a Comune II, onde os adultos influenciavam as crianças, não obstante a sua resistência, a tentar manter relações sexuais. Entre os Verdes, em 1985 houve o pedido de descriminalização do sexo com crianças e em 1989, a célebre editora Deutscher Ärtzteverlag publicou um livro que pedia abertamente que se permitissem os contatos pedófilos. Na época se combatia em particular a moral sexual católica enquanto obstáculo repressivo para a “emancipação da sexualidade infantil”.

Somente no fim dos anos 1980, na sua maioria consultores feministas justamente explicaram que não existem relações sexuais não violentas entre crianças e adultos. Todavia, não foi sempre fácil encontrar um meio termo adequado entre banalização e escândalo. Depois esta onda investiu também a Igreja católica e muitos de seus representantes não conseguiram mais entender o mundo. Se até pouco tempo, aqueles que tinham apoiado a descriminalização da pedofilia os expunham ao ridículo pela sua rígida moral e totalmente fora de moda, de improviso são eles agora os verdadeiros malfeitores por atenuar o rigor das leis.

Também no debate atual muitas vezes se ignora o contexto social e a Igreja católica fica isolada como bode expiatório de todos estes sonhos anormais e escandalosos de sexo infantil sonhados há 40 anos em ambientes alternativos. Os críticos da Igreja, e também alguns de seus representantes, colhem a oportunidade para repetir o mesmo refrão: a culpa é das estruturas eclesiásticas, da moral sexual, do celibato. Não é, porém outro que um abuso declarado dos abusos mas, sobretudo uma perigosa desinformação que protege os culpados.

A verdade é que todas as instituições para crianças e jovens atraem pessoas que buscam um contato ilícito com os menores. Isto vale para as associações esportivas, pelas estruturas de assistência aos jovens e naturalmente também para as Igrejas. Um dos principais especialistas da Alemanha, Hans-Ludwig Kröber, não encontra nenhuma indicação para a maior freqüência de casos de pedofilia entre os professores celibatários do que os outros. Infelizmente a ciência ainda não soube desenvolver um método de mapeamento que permita individuar tais pessoas. Resta, portanto somente a observação responsável e a rápida reação em casos de anomalias. Para tanto as estruturas da Igreja são até uma ajuda. Essa pode reagir de modo mais coordenado e profissional se comparada à uma associação esportiva local. Por outro lado, se fala do responsável por jovens que cometeu abusos na Baixa Baviera somente nas páginas destinadas à crônica dos jornais locais, enquanto que quando se trata de um pároco se tem notícias em todo o País. O que é justo, em se tratando de um grave crime. Mas desta maneira se cria uma imagem distorcida no que diz respeito à freqüência.

Ainda, a combinação de sacralidade, sexualidade e rostos de crianças certamente chama sempre grande atenção. Qualquer coisa que se possa pensar da moral sexual católica, também nos tempos de banalização da pedofilia, essa era, para quem a respeitava, um baluarte contra o abuso das crianças. E citar neste contexto o celibato é um ato particularmente irresponsável. Em uma conferência em Roma em 2003, os principais especialistas internacionais – todos não católicos – declararam que não existe uma ligação entre este fenômeno e o celibato.

Com certeza as referências ao celibato não raramente servem para as mentirosas estratégias daqueles que cometem tais abusos. Naturalmente se favorece a causa dos culpados, também de modo não intencional, se se torna presa de um “furor de autoflagelo” (Kröber) e se faz reviver a caricatura do velho mito dos jesuítas – segredo, “tratamento individual” intensivo – citando-a como possível causa. Obviamente todos os contatos a dois podem ser instrumentalizados por aqueles que cometem os abusos. Uns dez por cento dos psicoterapeutas, antes ou depois, supera os confins do abuso. Mas a própria psicoterapia não é responsável pelo abuso, como também não o é o acompanhamento inaciano daos aos alunos dos colégios.

Deve-se desfrutar sem restrições as descobertas da ciência, tomar medidas de proteção e prevenção e procurar a transparência. Qualquer bispo que hoje quisesse ainda esconder embaixo do tapete qualquer coisa deste tipo deve ter perdido o senso. A nós, alemães, resta desejar que encontremos finalmente a coragem para renunciar às usuais projeções quando se trata deste tema sério e de aceitar a banalização dos abusos sexuais de crianças que foi aceita por longa data como parte da culpa de nós todos. Pode-se seguir o exemplo de Eberhard Schorsch, que em 1989 se distanciou publicamente da sua afirmação irrefletida em 1970.
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Fonte: IHU online, 19/02/2010

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