JOÃO PEREIRA COUTINHO
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Com pedagogia vulgar, "A Fita Branca" reduz o nazismo a
um problema de autoestima alemão
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COMO explicar o abismo de loucura, violência e desumanidade em que a Alemanha mergulhou a partir de 1933?
Existem explicações para todos os gostos. Históricas. Rácicas. Econômicas. Psicológicas. Até parapsicológicas.
Hitler era um produto da humilhação do Tratado de Versalhes e da falência da República de Weimar. Hitler alimentava um ódio aos judeus porque tivera experiências humilhantes com eles. Hitler era filho bastardo e transportou as suas inseguranças para a esfera pública. Hitler era impotente. Hitler era gay. Hitler era um extraterrestre. Ninguém sabe o que fazer com Hitler.
Michael Haneke pertence a essa longa galeria de exegetas e o seu último filme, "A Fita Branca", atualmente em exibição, é outra tentativa de resposta.
Ponto prévio: não sou um fã de Haneke. A sua visão negra da natureza humana deveria fazer as delícias de um pessimista antropológico como eu? Admito que sim. Mas o cinema de Haneke, de um rigor formal absoluto, não é feito por um ser humano; é feito pela cabeça geométrica de um robô. E eu não gosto de robôs.
"A Fita Branca" cumpre o programa na perfeição. Estamos na Alemanha, em vésperas da Primeira Guerra Mundial. Comunidade rural e protestante. Subitamente, começam a suceder crimes sem explicação óbvia.
O médico da aldeia cai do cavalo porque alguém colocara um fio de náilon no caminho. O filho do barão local é barbaramente espancado em dia festivo para a aldeia. Uma criança deficiente é amarrada a uma árvore e quase desfigurada. No final, a criança desaparece sem deixar nenhum rastro.
O filme de Haneke vai construindo essa sucessão de crimes, ao mesmo tempo que revela outros: crimes mais íntimos, mais privados. Mais, digamos, "familiares".
O médico, que começa como vítima, afinal revela-se um monstro moral na sua relação incestuosa com a filha e na forma humilhante como trata a sua amante clandestina. Sem falar do pastor da terra que, apesar de conservar a distinção básica entre o bem e o mal, é dotado de uma inflexibilidade ética, de uma ausência de compaixão genuína, que o leva a extremos de crueldade para com a própria descendência.
E no final dessa longa galeria de horrores, vem a pergunta policial: quem cometeu os crimes? Mais ainda: por que motivo esses crimes são cometidos?
A única pista que Haneke nos deixa aparece em bilhete manuscrito com evocação bíblica apropriada: "Porque eu, o Senhor, teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a maldade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração". Hipótese fatal: serão então as crianças, vítimas da brutalidade paterna, os carrascos da Alemanha e da Europa futuras?
Não nego que "A Fita Branca", premiado em Cannes, é esteticamente apelativo: filmado e narrado em tom de documentário, com um preto e branco granulado e "artesanal", a obra de Haneke tem ainda o talento supremo de oferecer personagens quase fantasmagóricas no seu anacronismo expressivo. Assistimos ao filme de Haneke e até acreditamos que cada fotograma foi fixado por August Sander, o fotógrafo germânico que deixou importante espólio retratista sobre o mundo que a Segunda Guerra Mundial enterrou de vez.
Mas o meu desconforto com o filme de Haneke não é formal. É, se quiserem, histórico e até filosófico. Haneke não procura apenas oferecer uma meditação sobre o mal: Haneke procura explicá-lo. Uma forma de arqueologia moral que remete a deriva criminosa do nazismo para a infância dos seus carrascos.
Aliás, na mundividência de Haneke, os nazistas não seriam propriamente carrascos. Seriam, primeiro que tudo, vítimas de outros carrascos. A ideia de um nazista como vítima da violência inata e orgânica da sociedade alemã pré-1914 é uma forma perversa, ainda que involuntária, de absolver qualquer criminoso de todos os seus atos mais nefandos.
Entre 1933 e 1945, o caminho trilhado pela Alemanha não estava inscrito nos pais dessa Alemanha. Estava inscrito na forma como a natureza humana se acomoda à "banalidade do mal": como segue ordens sem as questionar; como abdica da sua consciência última; como acredita na criação de um estado de perfeição rácico que implica, e justifica, e desculpa, todas as atrocidades.
Na sua pedagogia vulgar, "A Fita Branca" reduz o nazismo a um problema de autoestima. Não conheço maior insulto: à inteligência dos presentes e à memória dos ausentes.
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jpcoutinho@folha.com.br
Fonte: Folha online, 23/02/2010
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