terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O euro ameaçado

Antonio Delfim Netto*


A nuvem escura que se formou sobre o euro deve lembrar-nos de três raras verdades sobre as taxas de câmbio: 1) o "trilema" das economias abertas (também conhecido como "trindade impossível") mostra que nenhum país pode manter taxa de câmbio fixa com liberdade de movimento de capitais e, simultaneamente, realizar a política monetária mais conveniente para seus objetivos; 2) nenhum sistema de câmbio é o "certo" para todos os países durante todo o tempo; e 3) que a liberdade de movimento de capitais foi contrabandeada alegremente para dentro da teoria econômica como uma extensão, não justificada, das vantagens comparativas nas transações de bens e serviços nesta proposição logicamente impecável.

A última encontra grande resistência nos economistas financeiros e na academia, que acreditam no "equilíbrio geral". Nunca é demais reafirmar que John Williamson, que organizou o Consenso de Washington, recusou-se a incluí-la, a despeito dos protestos de Stanley Fischer, economista-chefe do FMI. Aliás, a primeira recomendação do Consenso era que os países em desenvolvimento deveriam manter "taxas de câmbio competitivas"!



A ironia do destino é que, com tempo suficiente, a verdade se revela, a despeito das barreiras do interesse mesquinho e do contrabando ideológico que tentam escondê-la. Um novo documento do FMI mostra que este aprendeu com a crise. Em particular tornou-se muito mais cuidadoso com relação às supostas virtudes da liberdade irrestrita dos movimentos de capitais para os países emergentes e recomenda que o cuidado com eles deve ser tanto maior quando mais sofisticado for o sistema financeiro.

O grande "escândalo" para os mercadistas fanáticos é que já não se condena "a priori" a regulação daquele movimento. O nosso Banco Central vai ter que se reciclar. Justamente agora ele parece pretender transformar o Brasil num grande centro financeiro internacional, promovendo a mais completa conversibilidade do real...

Para entender as dificuldades enfrentadas pelos 16 países da União Europeia (UE) que utilizam o euro como moeda comum, é preciso lembrar o longo e tortuoso caminho percorrido desde o fim da Segunda Guerra Mundial pela França e pela Alemanha para superar seu estranhamento secular, que sempre esteve na base dos conflitos europeus. Esse objetivo político dominou a construção da UE, que foi incorporando outros países que se sentiriam desconfortáveis com possível "dominação" pela França e a Alemanha unidas. Deu-se razoável conforto a todos na construção do Parlamento Europeu, onde cada um tem voz proporcional à sua importância no conjunto.

A possibilidade de sucesso desse arranjo institucional politicamente aceitável está apoiada na criação de uma moeda única, construída aritmeticamente pelo estabelecimento de uma relação definitiva, numa data fixada, entre as moedas de cada país (franco, marco, lira etc.) e a nova moeda, o euro, cujo valor é controlado pelo Banco Central Europeu. Em poucas palavras, a adoção do euro retira dos países o controle sobre sua política monetária e sobre a política cambial. Esta passa a ser um regime de câmbio fixo com relação à moeda comum.

Para funcionar bem, esse arranjo deve ser acompanhado pela completa mobilidade dos fatores (mão de obra e capital), ou seja, é preciso que a "região" satisfaça as condições de uma Área Monetária Ótima (AMO), o que acabaria nivelando salários e as taxas de retorno do investimento. No nível médio, esses países viram a taxa de juros de sua dívida convergir para a da virtuosa Alemanha. E a política fiscal dos membros, que é a única coisa que lhes restou? Sobre ela criaram-se normas absolutas: os déficits fiscais de cada país não deveriam exceder 3% do PIB e a dívida pública/PIB não deveria exceder 60%.

Onde mora o perigo na UE? De um lado na confiança entre os parceiros. Há uma eterna tentação dos governos de iludir o velho Luca Paciòli (1445-1517) fantasiando a sua ciência. O que se sabe agora sobre a Grécia e a Goldman Sachs não é tranquilizador a esse respeito. Dos 16 países do euro, 12 estão sendo "investigados" (auditados) pela UE por suspeita de contabilidade "criativa". Sem controle fiscal não há AMO que resista.

Por outro lado, a taxa de câmbio efetiva do país depende da evolução interna dos salários e da produtividade, o que desloca as correntes de comércio. A Alemanha, por exemplo, tem "desvalorizado" sistematicamente sua taxa de câmbio com relação aos parceiros, controlando o aumento da sua taxa de salário. Em 2010 e 2011, praticamente congelará os aumentos dos salários em troca da garantia de emprego. A nuvem escura a que nos referimos está estampada na tabela abaixo, que revela as "expectativas" para 2010 quando comparadas com o que exige a CEE.

O problema é o mesmo de sempre: os efeitos de rede! Esses cinco países têm exposição bancária da ordem de US$ 3,5 trilhões (EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Suíça), igual ao PIB nominal da China em 2008. Um "default" da Grécia pode levar à destruição do euro e a uma crise do tamanho da de 1929, que só foi resolvida com a Segunda Guerra. Destruiria essa "joia política" garantidora da paz na belicosa Europa. É por isso que ela vai ser salva por seus parceiros, mas não sem ter que se ajustar dolorosamente.
_______________________________________
*Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento
E-mail: contatodelfimnetto@terra.com.br
Fonte: Valor online - http://www.valoronline.com.br/?impresso/brasil/89/6118206/o-euro-ameacado

Nenhum comentário:

Postar um comentário