sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Contar para viver

Eric Nepomuceno*
Literatura: O inglês Gerald Martin faz revelações inéditas
em biografia monumental de Gabriel García Márquez
que será lançada no Brasil.

García Márquez (com Mercedes) chega a Aracataca em 2007,
na primeira visita à cidade natal após ganhar o Nobel de 1983:
biógrafo é o primeiro a falar de caso amoroso
que ele teve no exílio quando era noivo dela

"Todo escritor respeitável deve ter um biógrafo inglês." Assim Gabriel García Márquez comentou o trabalho de Gerald Martin, nascido na Londres de 1944, que dedicou 17 anos de sua vida erguendo a biografia de um dos mais respeitáveis - e populares - escritores do último meio século. Pelo menos em extensão, uma tarefa monumental: mais de 2 mil páginas. A versão final de "Gabriel García Márquez: uma Vida", que a Ediouro lança no Brasil no próximo mês, tem um terço do tamanho da original.

Para escrever esse mundaréu de páginas, Martin abandonou a cátedra de línguas modernas da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, e se refugiou no interior da Inglaterra. Perambulou pelo Caribe colombiano, por Bogotá e Cuba, pelo México, revirou Paris e Barcelona. Falou exaustivamente com a família e com vários amigos próximos de seu personagem. Diz sentir que jamais terminará de escrever essa biografia e ter esperanças de, um dia, publicar a gigantesca versão original.

Não é, segundo García Márquez, uma biografia autorizada, mas apenas "tolerada". O esclarecimento é parte de seu humor caribenho. É evidente que, apesar de não ter entregado documentos e arquivos pessoais, facilitou importantes contatos - a começar por Fidel Castro - e deu luz verde para que amigos e familiares falassem.
                                                                                                                                                                                           Reuters
García Márquez no México em 2009 e na Suécia, em 1983, ao receber o Nobel de Literatura (abaixo): além de relatar minúcias que dormitavam na sombra, Martin traça uma espécie de biografia da obra do escritor, contando como foi estruturada e escrita, revelando não só sua vinculação com a realidade, mas os desdobramentos que levaram um livro a outro

Ninguém se animaria a romper por conta própria o pacto de silêncio que rodeia a intimidade de García Márquez. Esse pacto obedece a categorias que foram muito bem estabelecidas, embora nem por isso sejam claras e visíveis: "Todo escritor tem uma vida pública, uma vida privada e uma vida secreta", diz ele. Tentar discernir o que é vida privada e o que é vida secreta é um desafio para os amigos - e, por isso mesmo, todo cuidado costuma ser pouco na hora de contar o que se sabe ou se supõe saber. Pelo sim, pelo não, fala-se do que é público e silencia-se sobre o resto. García Márquez é de uma lealdade extrema aos amigos e espera ser rigorosamente correspondido.

Generoso e solidário sem medidas, o escritor é também um enérgico defensor de sua intimidade - e isso para não mencionar a secretíssima vida secreta. Trata-se de uma espécie de quebra-cabeça formado por peças isoladas e esparsas ao longo do tempo que só ele sabe montar.

A tarefa de Gerald Martin certamente não foi nada fácil, e por várias razões. Em primeiro lugar, a vida de García Márquez está de tal maneira enredada em sua narrativa que a partir de certo ponto é quase impossível separar autor e personagens. Eu mesmo fui testemunha disso, enquanto ele escrevia "O Amor nos Tempos do Cólera" ou lapidava seus "Doze Contos Peregrinos". Sua obra é feita de relatos do que foi avidamente vivido na dupla condição de participante e observador rigoroso.

García Márquez afirmou mil vezes que não há nenhuma única linha do que escreveu que não tenha como ponto de partida um dado da realidade. A nova biografia confirma isso de maneira límpida, mostrando como tudo gira muito mais ao redor da sua memória do que de sua propalada imaginação. De forma detalhada - tão detalhada que chega a ser excessiva em várias passagens do livro - Martin mostra como enredos e personagens da obra de García Márquez são profunda e solidamente vinculados a fatos e pessoas da vida real.

Além disso, na hora de mapear sua vida tropeça-se com outro obstáculo. García Márquez não tem propriamente um círculo de amizades: tem vários. São círculos concêntricos que chegam a um cerne difícil de detectar. Os que integram essa espécie de máfia (a definição é do próprio García Márquez) sabem qual é a parte que lhes toca nesse latifúndio afetivo. Para os amigos, é bastante claro que há patamares e espaços próprios. É correto supor, então, que na hora das entrevistas Martin tenha feito vários percursos de voo cego, tentando adivinhar quem é quem e achar as pistas daquilo que seu biografado não insinuou ou esclareceu.

Outra dificuldade, entre tantas: poucos autores contemporâneos tiveram, como ele, tão exposta sua figura. Nos últimos 50 ou 60 anos, entre escritores de prestígio e qualidade, Ernest Hemingway é o único que o superou nessa exposição. O próprio biografado já gotejou, em depoimentos, relatos e entrevistas, aspectos essenciais de sua história e de sua maneira de ver o mundo e a vida.

Acontece que García Márquez jamais abriu mão do controle desse gotejar de informações e revelações. Fez isso em conversas com amigos mais próximos, sabendo que o que falaria viria à tona. Em várias ocasiões provocou entrevistas reveladoras do que interessava divulgar. Bom exemplo dessas situações foram suas longas conversas com Plínio Ampuleyo Mendoza, transformadas num livro essencial e de uma sinceridade extrema, "O Cheiro da Goiaba". Existem, enfim, os livros que ele sabia que estavam sendo escritos e - se não ajudou os autores - não fez nada para impedir que viessem a público. Um deles - "Viagem à Semente", do colombiano Dasso Saldívar, publicado aqui pela Record - é especialmente interessante.

Pois justamente ao levar em conta esses antecedentes o trabalho de Gerald Martin ganha mais peso. Afinal, mais do que juntar informações esparsas e organizar tudo, era preciso paciência bíblica para buscar e revelar fatos desconhecidos ou pouco divulgados. Como disse o poeta e ensaísta peruano Julio Ortega, que há décadas conhece e acompanha a vida e a trajetória de García Márquez, Martin mostrou que é "o homem mais paciente do mundo". Trabalhou sem cessar e produziu um documento de importância evidente.

Com meticulosidade radical, virou García Márquez pelo avesso. Chegou a roçar de leve alguns poucos pontos de sua vida secreta. É, de longe e sem dúvida, a mais vasta e completa biografia do escritor colombiano.

Além de relatar minúcias que dormitavam na sombra, Gerald Martin traça uma espécie de biografia da obra, contando como foi estruturada e escrita, revelando não apenas sua vinculação com a realidade, mas os desdobramentos que levaram um livro a outro. Atendo-se ao factual, prefere relatar a opinar, nega-se a facilitar polêmicas baratas, iracundas e, ainda assim - ou por isso mesmo -, inevitáveis. Mostra a integridade sólida de seu biografado, que surge nítida mesmo em passagens densas e contraditórias de uma vida especialmente agitada.

É evidente que Martin sente admiração e curiosidade pelo personagem. Afinal, ninguém se dedica a uma tarefa dessas dimensões se o interesse não for grande o suficiente. Ainda assim, fez um trabalho objetivo e equilibrado. O retrato final é claro e revelador, com luzes e sombras, mostrando um ser humano complexo, com as contradições naturais e comuns a qualquer um, mas dono de uma grandeza absolutamente incomum.

O biógrafo não se apequenou diante do risco de que, ao ler o livro, García Márquez se incomodasse com diversas passagens (como, de fato, se incomodou). Preferiu ser leal à tarefa assumida, sabendo que seria a melhor forma de ser leal também ao biografado. O resultado é um longo relato que consegue ser objetivo e manter um distanciamento exemplar e, por isso mesmo, esclarecedor.

Há várias revelações inéditas. Uma se refere ao caso amoroso mantido por um García Márquez exilado e miserável em Paris, nos tempos em que sua noiva e companheira-guardiã de toda a vida, Mercedes Barcha, esperava por ele na Colômbia. Em "Viagem à Semente", Dasso Saldívar havia tratado desse assunto. Martin, porém, traz revelações que surpreenderam até mesmo alguns amigos de seu biografado. Outra está relacionada às vinculações de García Márquez com a revolução cubana e, em especial, sua aproximação com Fidel Castro.

Saldívar, em seu livro, dá amplos detalhes dos problemas enfrentados pelo colombiano em seus tempos de redator da agência estatal Prensa Latina, no começo dos anos 60. Conta como, por ocasião do expurgo ideológico levado a cabo pela ala mais dura e stalinista dos cubanos, textos redigidos por García Márquez foram destruídos. Martin prefere não se deter nesses detalhes (que são importantes) e se fixa no grau de enfrentamento entre os defenestrados (na lista havia grandes nomes do jornalismo e da literatura hispano-americana, como o argentino Rodolfo Walsh) e os obtusos e sombrios da linha-dura da Cuba daqueles anos (aliás, muito parecidos aos de hoje).

É interessante ver, nessa biografia, como se deram o avanço e o aprofundamento da militância de García Márquez a partir do golpe militar de 11 de setembro de 1973 no Chile, que, entre outras tragédias, resultou na morte do presidente Salvador Allende. Em mais de uma ocasião, García Márquez afirmou que o golpe havia sido uma catástrofe pessoal para ele. O que Martin faz é mostrar que a afirmação estava longe de ser uma frase de efeito.

O capítulo dedicado a esse aspecto da vida do escritor é especialmente esclarecedor da evolução de seu compromisso político. Revela uma capacidade de previsão analítica bastante rara entre os intelectuais de esquerda da sua geração, além de uma coerência extrema (com a qual, é claro, se pode concordar ou não, mas jamais desprezar, como insiste em fazer a direita mais descabelada). Conta como García Márquez se dedicou a estabelecer laços sólidos com a revolução e dá detalhes de como isso foi sendo arquitetado até chegar a Fidel Castro e a uma amizade que se mantém sem tréguas nem fissuras há mais de 30 anos.

É clara, honesta e bem fundamentada a trajetória narrada, independentemente de estar ou não de acordo com o pensamento e a atuação de García Márquez.

O livro de Gerald Martin é, enfim, um manancial de histórias surpreendentes e fascinantes - como, aliás, surpreendente e fascinante é o seu biografado. Talvez falte um pouco de calor humano, da capacidade que García Márquez tem de ver na vida algo ditoso que deve ser aproveitado até a última gota. É como se, apesar de saber tudo sobre seu personagem, Martin não tenha conseguido conhecer a sua alma. Mas essa impressão pode muito bem ser resultado do distanciamento que ele procurou e alcançou.
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*Eric Nepomuceno é autor, entre outros títulos, dos contos reunidos em "Antologia Pessoal" (Record, 2008). Traduziu oito livros de Gabriel García Márquez, com quem convive desde 1978.
Fonte: Home > Valor Econômico online > Impresso > EU & Fim de semana > Cultura - 26/02/2010

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