MARCELO COELHO
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A felicidade e a infelicidade são vistas como fatos,
que pouco dependem de nós
que pouco dependem de nós
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SOBRE ESSAS coisas nunca se pode ter certeza, e meu contato com o indivíduo em questão foi muito rápido e superficial. Mas acredito ter encontrado um forte candidato ao posto de homem mais feliz do mundo.
Ele trabalha num estacionamento, onde deixei o carro algumas vezes. Não é manobrista (aí a felicidade seria um completo milagre). Fica no caixa, sendo um daqueles encarregados de perguntar para a gente a cor, o modelo e a placa "do veículo", como eles gostam de dizer.
Nosso personagem, contudo, não pergunta nada. Assim que cheguei ao estacionamento pela primeira vez, ele simplesmente abriu um sorriso, como se eu fosse o único cliente a ter aparecido por ali desde o início do ano.
Da segunda vez, ele me reconheceu, como a um velho amigo. "Ah, veio buscar as crianças na escola...! Isso mesmo...!" Tirava prazer da constatação e aprovava minha atitude, como se eu estivesse fazendo algo extraordinário. Ao meio-dia, o calor era terrível. O homem da guarita encarava isso como uma excelente notícia.
Procurei ler nos seus olhos o que se passava. Não parecia drogado nem sofrer de alguma deficiência de percepção. Não havia, tampouco, nenhuma sombra de interesse monetário ou sexual no modo com que me encarava.
De fato, nem sei se me encarava. O olhar era tão apaziguado, tão lavado de inquietações ou de perguntas, que dava a sensação de estar vendo alguma coisa de encantado, de inacessível às pessoas comuns.
Seria um "renascido em Cristo"? Alguém que, depois de muito procurar, conseguira finalmente seu primeiro emprego estável? Salvou-se de algum acidente horroroso? Em qualquer caso, imagino que alguma lembrança da sua vida anterior, das suas desgraças passadas, houvesse de persistir na expressão do rosto.
Não. Ao contrário de todo ser humano adulto, o homem do estacionamento parecia estar com a vida nova em folha, e o que brilhava nos seus olhos, como um colírio, tinha tudo para ser o orvalho da primeira manhã do Paraíso.
Existem pessoas assim. Conheci há tempos uma família numerosa e muito animada. Toda vez que se reunia, engalfinhava-se numa discussão tremenda, que passava da política ou do aquecimento global para as mais duras recriminações pessoais, com todos querendo falar ao mesmo tempo.
Todos, menos um. O irmão do meio, ainda que participando dos debates, não brigava com ninguém; mantinha-se calmo, afetuoso, feliz.
"Ele é sempre assim", explicaram-me. "Quando era bebê, quase nunca chorava. No berço, dormindo ou acordado, sorria o tempo todo."
Penso agora naquela professora do Alabama, que, na semana passada, abriu fogo contra colegas da universidade. Matou três. Pegaram o histórico da moça -Amy Bishop é o nome dela-, e concluíram que provavelmente matou seu irmão em 1986. Caiu de pancada em cima da frequentadora de um restaurante, porque se julgava no direito de pegar para sua filha pequena uma cadeirinha que já estava ocupada. É suspeita de ter enviado uma carta-bomba a um professor de Harvard.
Furiosa e infeliz, em suma, sem grandes motivos para isso. Não é difícil saber aonde levam as tentativas de explicação em casos tão extremos: deve estar tudo no DNA dela, assim como algum gene especial deve ter abençoado o funcionário do estacionamento.
Sem questionar a base científica que essas teorias possam ter, acho que o recurso ao "DNA" veio substituir, nos dias atuais, uma tese bem mais antiga: a ideia calvinista da predestinação. Deus teria distribuído desigualmente suas graças e bênçãos aos homens e às mulheres deste mundo. Para alguns, está reservado, desde sempre, o Paraíso; para outros, a danação.
Na ideologia contemporânea, os decretos divinos dão lugar ao império do genoma. A cientificidade dessa crença é das mais precárias, sem dúvida, mas sua função social vai muito bem, obrigado.
O sucesso terreno, a vitória dos mais aptos, a felicidade e a infelicidade cotidianas são vistos como fatos, que dependem pouco de cada um de nós. É o deus-DNA.
Claro que cientistas podem descobrir métodos de modificação dessa herança genética. Neurobiólogos, quem sabe? Era essa a profissão de Amy Bishop, a franco-atiradora do Alabama. Vai ver que saiu matando pessoas porque se frustrou com sua incapacidade de mudá-las na medida necessária.
___________________________________________coelhofsp@uol.com.br
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2402201015.htm
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