Entrevista
Ingo Schulze Escritor, autor de “Vidas Novas”Nascido em Dresden, em 1962, e com boa parte de sua vida vivida na Alemanha Oriental, o escritor Ingo Schulze já estaria, apenas pelas circunstâncias, apto a fornecer um testemunho sobre os anos posteriores à reunificação da Alemanha. Vidas Novas, o romance de Schulze que torna esse testemunho ficção, abrange as transformações vividas pelos habitantes da república socialista do leste com a erupção súbita do capitalismo ocidental. Mudanças que se refletem na própria figura de Türmer, de aspirante a escritor a homem de teatro, jornalista e mais tarde homem de negócios. Schulze já teve dois outros livros publicados no Brasil: Histórias Simples da Alemanha Oriental (Lacerda Editores, 2002) e Celular: 13 Histórias à Moda Antiga (Cosac Naify, 2008), ambos coletâneas de contos. Por e-mail, Schulze concedeu a seguinte entrevista a Zero Hora:
Cultura – O romance epistolar parece um gênero descartado pela maioria dos autores contemporâneos. Por que o senhor escolheu estruturar seu livro como uma série de cartas?
Ingo Schulze – Eu busquei por muito tempo uma estrutura adequada àquela época e a minhas recordações. Trata-se de uma mudança de mundos, de uma mudança de dependências. Na vida do meu personagem (e na de todos os alemães orientais) mudou praticamente tudo da noite para o dia. Eu não queria apresentar um personagem com o qual acontece isto ou aquilo, e sim fazer com que este personagem tentasse, com as artes de sua oratória, convencer as pessoas daquilo que ele estava fazendo, e com isso – involuntariamente, é claro – ao mesmo tempo se desmascarar e se questionar a si mesmo. Uma vez que Türmer escreve cartas a três pessoas, percebe-se, na condição de leitor de todas elas, que existem incongruências. Mas não se sabe qual das versões é a verdadeira, qual não é, talvez nenhuma seja. Através do organizador, que tem o meu nome, é acrescentada mais uma voz, que, no entanto, também está longe de ser confiável. Além disso, as cartas são escritas no verso de velhos manuscritos. E esses manuscritos também oferecem outras versões para os mesmos acontecimentos. E o que pode escrever um personagem que afirma ter deixado de escrever? Cartas. Naturalmente também é importante lembrar que no princípio de 1990, na Alemanha Oriental, ainda era necessário escrever cartas, caso se quisesse comunicar algo a um amigo ou conhecido que morava em outro lugar. Os telefones eram raros, e o fax ou a internet só viriam mais tarde. Foi, por assim dizer, o último momento histórico no qual a carta (ou o telegrama) ainda eram necessários na condição de instrumento para enviar notícias.
Cultura – O título do livro faz referência à Vida Nova, de Dante. Também é visível a presença do Fausto de Goethe na figura de Barrista, um Mefistófeles que alicia Türmer não para ciência, mas para o dinheiro. É um tratamento irônico para a conversão “mística” da Alemanha Oriental ao capitalismo?
Schulze – Eu acho que nós sempre voltamos a contar as velhas histórias para acrescentar algo de nossa própria época, de nossa própria experiência. Com isso, aliás, se torna possível medir a própria experiência nas experiências da humanidade. Na segunda parte do Fausto também é caracterizada a invenção do papel-moeda, portanto também se trata de um livro sobre a economia e sobre a especulação. Eu mesmo pensei pela primeira vez de verdade sobre dinheiro com 28 anos, na primavera de 1990. Isso antes não era necessário. E esse pensar em dinheiro mudou tudo. Eu acho interessante descrever essa mudança. Do contrário, acaba se acreditando que o capitalismo e sua teoria do dinheiro é algo natural, algo que necessariamente tem de ser como é.
Cultura – O senhor se apresenta como “organizador” da correspondência de Türmer. O tradutor, Marcelo Backes, por sua vez, escreve notas nas quais critica o “organizador”. Quem propôs a experiência?
Schulze – Encorajei Marcelo a acrescentar suas próprias experiências na condição de comentários. A forma das notas de rodapé e dos prefácios ademais permite esse tipo de brincadeira, e além disso estende a abrangência do texto, em minha opinião. Isso mostra que, de um lado, essas experiências foram feitas de modo bem concreto na Alemanha Oriental, mas que existem experiências comparáveis, possibilidades de analogia. E isso é o essencial, no fundo. Eu lamentavelmente não consigo ler a tradução. Mas muita gente me contou a respeito e estou feliz de ter encontrado um tradutor, um colega e um amigo assim.
Cultura – Tivemos em 2009 muitos livros, ensaios e artigos sobre os 20 anos da queda do Muro e a posterior reunião das duas Alemanhas. Como o senhor avalia o processo de reunificação duas décadas depois?
Schulze – O problema é que não se tratou de uma unificação, e sim de uma adesão, a adesão da Alemanha Oriental à Alemanha Ocidental. Eu vejo os anos de 1989/1990 também como uma chance perdida, por parte do Ocidente, de mudar, de se transformar. Conforme as coisas aconteceram, o Ocidente ficou mais forte, virou o “vencedor da história”. Hoje nós pagamos pelo fato de a Alemanha Oriental ter se tornado uma região de consumo livre de concorrência para os produtos do lado ocidental. Hoje não se trata mais de leste e oeste, e sim de alto e baixo, daqueles que estão em cima e daqueles que estão embaixo. A sociedade alemã se polarizou enormemente. Há alguns anos, a pobreza se tornou um problema. Com isso ninguém sequer sonhava nos anos 90.
Cultura – O senhor está escrevendo uma história sobre a Amazônia brasileira? Como decidiu iniciar esse projeto?
Schulze – O que me interessa é a Terra Preta. Há muitos cientistas que dizem que nosso sistema de escoamento de dejetos está completamente errado. Em vez de usarmos o adubo, simplesmente o jogamos nos rios ou em estações de tratamento de águas residuais, onde eles se perdem ou acabam causando grandes danos. Alguns cientistas veem na Terra Preta que foi produzida pelos índios da região do Amazonas uma alternativa a esse modelo. Para mim é interessante que agora os descendentes dos que aniquilaram aquelas antigas culturas, com doenças, espada e cruz, agora queiram usar o espólio daquelas mesmas culturas para mudar algo fundamental. O que me interessa é naturalmente também uma reavaliação da história daquela região. Até agora se acreditou que os conquistadores teriam mentido e exagerado ao relatar a existência de grandes cidades. E agora escavações nas regiões de Terra Preta mostram que de fato existiu uma cultura altamente civilizada por lá. O que me interessa são os rastros que levam do Amazonas à porta da minha própria casa. Mas eu ainda me encontro no princípio do meu trabalho.
______________________________________________Fonte: ZH/Cultura online, 13/02/2010
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