O alemão Peter Sloterdijk (foto), autor de A crítica da razão cínica e de Regras para o parque humano, desenvolve, em Derrida, um egípcio: o problema da pirâmide judia, uma série de reflexões que se constituem em um autêntico diálogo entre as ideias de Jacques Derrida (1930-2004), o teórico da desconstrução, e o pensamento de autores de importância desigual. Felizmente a morte do filósofo franco-argelino não vira ocasião para produção de texto laudatório nem para a sua monumentalização. A homenagem vale pela proposição instigante que produz.
Entre a perda e a preservação, Sloterdijk opta por uma leitura dessingularizadora, cujas conexões proporcionam um distanciamento necessário da irradiação sedutora de Derrida. O recorte transdisciplinar permite o estabelecimento de aproximações entre o caráter aberto e multifacetado da obra derridiana e sete autores de campos diversos, como Niklas Luhmann, Freud, Thomas Mann, Franz Borkenau, Régis Debray, Hegel e Boris Groys. A lamentar, a ausência de Marx e Platão.
O autor atribui a potência da desconstrução ao fato de ter se revelado “a derradeira oportunidade para uma teoria integrar por meio da desintegração”. Recorre ainda à referência de Luhmann à desconstrução, cuja perspectiva pressuporia a “catástrofe da modernidade”, concebida como mudança da forma de estabilidade da sociedade tradicional, centralizada e hierarquizada, para a forma de estabilidade da sociedade moderna, diferenciada e multifocal. Sloterdijk defende a desconstrução como uma forma de teoria aberta a um futuro e dotada de transmissibilidade, de natureza autoaplicada, inscrita em um movimento que sempre a consolida e regenera. Razão pela qual termina o capítulo com uma indagação paradoxal: “Será possível que a desconstrução, em consonância com seu impulso central, desenvolvesse um projeto de construção que visasse produzir uma máquina de sobrevivência indesconstrutível?”.
É num clima de rêverie que surgem as referências a Moisés e o monoteísmo, texto do Freud tardio. Neste livro, na primeira parte, intitulada “Moisés, um egípcio”, o criador da psicanálise afirma que “Moisés, o libertador, o legislador e o pregador do povo judaico, não era judeu, mas egípcio”. Sloterdijk lê na interpretação freudiana um prelúdio da différance, tomando por base o conceito de deslocamento ou deformação usado por Freud, lido tanto como acontecimento quanto redação do acontecimento, relato no qual o que aconteceu tornar-se-ia irreconhecível. Moisés é aquele que rouba aos egípcios a identidade para legá-la aos judeus, processo que transforma o mito do êxodo não numa “secessão do judaísmo em relação ao poder egípcio estrangeiro, mas a realização do egipcismo mais radical por meios judaicos”. Moisés origina o ato de transporte de uma cultura perdida e de uma identidade que será sempre retorno ao lugar vazio da gestação. O êxodo marca a estrangeiridade como sinal gravado num corpo que se constitui como abandono e presença do que não pode ser recuperado.
Valendo-se da semelhança em alemão entre sinal e signo (ambas Zeichen), Sloterdkijk sugere que Thomas Mann, no romance José e seus irmãos teria realizado uma profecia involuntária sobre Derrida, já que o sucesso de José também deve ser atribuído ao extraordinário domínio da arte de ler sinais desconhecidos pelos egípcios. O autor considera a desconstrução como uma terceira onda de interpretação dos sonhos, capaz de ultrapassar os modelos da psicanálise e da hermenêutica messiânica, o que acontece “na forma de uma semiologia radical, trazendo a prova de que os signos do ser jamais propiciam a plenitude de sentido que prometem”. Se egípcio é o predicado de todas as construções que podem ser submetidas à desconstrução, Derrida torna-se o alvo.
A aproximação da obra de Derrida às teses de Franz Borkenau (1900-1957) sobre a atitude das civilizações em relação à morte possibilita a Sloterdijk, mediante a apropriação do conceito de “antinomia da morte”, conceber a desconstrução como “um ato resultante da mais radical secularização semântica – constituindo-se no materialismo semiológico em ação. Poder-se-ia descrever o procedimento desconstrutor como um manual de instruções, a fim de permitir a transmissão das igrejas e castelos do ancien régime metafísico e imortalista para as mãos dos mortais civis”.
Debray auxilia na recontextualização midialógica de Derrida. A biografia e o trajeto do Deus do monoteísmo só foram possíveis graças ao seu exílio, à fuga do lugar de sua invenção e pelo fato de ser dotado de formas de transportabilidade e transmissibilidade, o que implicou a escolha de meios. Deus passou da mídia da pedra para a do pergaminho, ou como afirma Debray: “De repente, o divino muda de mãos: dos arquitetos, passa para os arquivistas. De monumento, torna-se documento”.
É o texto “O poço e a pirâmide: introdução à semiologia de Hegel”, inserido em Margens da filosofia, a fonte das reflexões de Sloterdijk. O autor sustenta a força da leitura no centro do pensamento de Derrida, marcado pela propriedade da filosofia nos tempos atuais: tornar-se uma observação de observações, um texto de segunda ordem, mecanismo de compensação à desvantagem da chegada tardia ao mundo em que o essencial já foi feito. Se Hegel considera a pirâmide o signo de todos os signos, Derrida entende que a única maneira de desconstruí-la é perseguir todo o trajeto da sua transformação em escrita, até remontar ao poço original que a engendrou, algo que transparece na afirmação: “O tempo do signo é então tempo do retorno”.
Via Boris Groys as cinzas de Jacques Derrida são lançadas nos arquivos da cultura humana, na rede onde se aliam o finito e o infinito. Os arquivos reproduzem as câmaras funerárias das pirâmides, arquétipos do espaço morto que podem ser levados e reinstalados em qualquer lugar para onde caminhamos todos nós, derridianos ou não. Como senha de acesso a eles, a frase de Derrida sempre nos lembrará de que “a linguagem se cria e cria mundos”.
___________________________________________Reportagem: José Antônio Cavalcanti, Jornal do Brasil
FONTE: Jornal do Brasil online, 12/02/2010
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