Sai no Brasil coletânea de textos do alemão Heinrich Heine
Quando se fala em clássico alemão, ainda mais em poeta, a palavra que nos vem imediatamente à cabeça é Goethe. Mas, e Heine (1797-1856)? Aos poucos ele vai sendo conhecido no Brasil e talvez esse quarto título seu – Os deuses no exílio – que é lançado agora numa edição, sem nenhum exagero, brilhante, definitivamente o ponha como referência da qual não podemos fugir.
Não foi à toa que a editora Iluminuras esmerou-se em organizar escritos diversos que, no fundo, tratam de um mesmo tema, quase obsessão heininiana. O destino das divindades antigas, que alimentavam mais um imaginário mitológico que teológico. Não havia um altar em cada casa, mas vários. E os deuses comportavam-se como os humanos, medindo forças, demonstrando vícios, apaixonando-se, vingando-se.
Nascido na Judeia, o cristianismo difundiu-se primeiro no Oriente. São Pedro foi o primeiro bispo de Roma, mas o apóstolo mais ativo da igreja cristã foi São Paulo, que divulgou ativamente as novas doutrinas na Ásia Menor, na Grécia (origem dos maiores protagonistas de Heine) e na Itália. Religião revelada, trazia um mártir. Antes dele, uma sucessão de épicos eventos marcavam de forma mais poetizada e impressionante o politeísmo dos gregos, sobretudo os liderados pela figura sobre-humana de Zeus.
Sobre-humanos eram todos, mas suas características eram mais de atletas que de miraculosos, mais de viciados em todos os pecados do que rigorosos senhores a nos nortear para longe dos desvios. Os deuses antigos, antes que o cristianismo chegasse e os tornasse a todos uma lenda, uma literatura de ficção, eram parceiros do homem com armas que os homens não tinham. E iluminavam as suas biografias sagradas com o brilho de ações estupendas que os faziam heróis, prodígios, mais milagres que milagreiros – mas nunca, jamais, santidades.
Essa natureza edulcorada e mártir, eivada de bondade, que o cristianismo esparge a partir de suas leis, é quase o oposto do que pregavam os deuses de que Heine fala. E mais: ele nem os ressuscita. Tenta flagrá-los (o que torna o livro uma aventura fantástica e uma poesia tomada de ironia) nos dias de hoje, espécies de mendigos, de monstruosidades, de seres deformados, de fantasmagorias que, se por um lado potencializam a mitificação e o imaginário, por outro lado esvaziam por completo o elemento teológico.
Falar, que é bom, nem pensar
Onde estarão os deuses agora, uma vez que perderam seu Olimpo e o território que lhes foi dado é uma terra habitada por seres precários pelos quais eles já nem podem fazer nada nem sequer parecem querer?
Estão por todo lado, não exatamente em qualquer lugar, mas em lugares especiais nos quais a violência da presença revela espanto, não esperança, revela inquietação, não fé, revela desconforto, jamais conforto.
Publicado em 1853, a primeira versão na França, na Revue des Deux Mondes (graças à brevidade dos textos), e semanas depois na Alemanha, Os deuses no exílio – essa visão desconcertante de entidades divinas que, na edição brasileira, tem organização de Marta Kawano e Márcio Suzuki – é uma espécie de testamento literário de Heine. E que testamento! Equivalente, sem dúvida, ao epitáfio dos epitáfios.
Os deuses, os lendários deuses, aqueles diante dos quais os homens pareciam nutrir-se de uma força extra, não estão mortos, mas extraviados. Estão sem um papel a cumprir. Seus poderes foram moralmente destituídos pela nova e predominante religião.
Esses deuses que inclusive traíam uns aos outros, deuses que tinham sexo e que, homens, cobiçavam deusas, não só fêmeas como exuberantes. Disso todos sabíamos. Mas depois, quando passou a época de ouro na qual eles resplandeciam, o que foi feito deles? Ficaram na memória para alimentar uma ficção que até hoje circula e impressiona.
Porém mais impressionante é o que Heine faz. Mostra o quanto eles são cativos de gestos, trovões, raios, voos, mergulhos, desaparições e aparições – porém, falar, que é bom, nem pensar.
Jesus, que era um grande orador, teria piedade deles. E como se não bastasse, não é preciso evocar o nome de Jesus. Tais deuses mudos, fenômenos poderosos mistos de animais, em alguns requisitos perdem para o próprio e limitado ser humano. O homem fala, ora, escreve, lê, e, quando cai na crueldade, é perseguido pela culpa.
Esses deuses hoje sem atmosfera, uma vez que não tiveram linguagem (nós é que a criamos para desenhá-los verbalmente), deixaram de memória o quanto eram manhosos (em estratégias mais de raposa que de jogador de xadrez), ignorantes (em que episódio da mitologia se vê um viés psicológico de algum deles?) e implacáveis, malvados, como predadores.
Ruiu seu mundo substituído por outro. E o homem aprendeu que no máximo eram inimigos perigosos, diante dos quais era preciso estar armado. Não deixam de ser simpáticos – na comparação com as intocáveis e politizadas religiões contemporâneas – e simples. E estavam mais próximos de nós. Por isso, ainda andam por aí, nalguma calçada, metamorfoseados em rebotalhos que o mundo atual, virtual inclusive, ignora. Quem não sabe falar (e eles não sabiam) quase não passa de prestidigitador. E isso é puro truque que, com o tempo, vamos desmontando. Até mesmo com poesia, como fez Heine:
“Ali está Krónos, o rei do céu, /As madeixas brancas como neve, /As famosas madeixas que fazem estremecer o Olimpo. /Ele mantém na mão o relâmpago apagado. /Em seu rosto há infortúnio e desgosto, /E no entanto sempre o antigo orgulho”.
Continuará a lenda que se tornou verdade. Porém, a verdade, revelada pelo poeta alemão, é dilacerante, humaniza os antigos deuses e simultaneamente arranca-lhes a máscara hoje já não mais impressionante.
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Reportagem: Paulo Bentancur, Jornal do BrasilFONTE: Jornal do Brasil online - 12/02/2010
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