domingo, 14 de fevereiro de 2010

Senhor Bispo

Rubem Alves*
Dirijo-me a V. Rvma. a fim de solicitar esclarecimentos sobre um problema teológico. Recebi um e-mail de uma mulher que desconheço. Ela o enviou após ter lido um artigo meu sobre o batizado da minha neta Mariana do qual o celebrante não autorizado, incrédulo mas poeta, fui eu. Disse-me que tem um filhinho e é seu desejo batizá-lo. Mas o sacerdote lhe nega o batismo sob a alegação de que ela e o pai da criança não são casados na Igreja. A Santa Madre Igreja, assim, em nome de Deus, recusa a graça salvífica, monopólio seu, a uma criança, colocando sua alma em perigo por um pecado que não cometeu. Sem a graça salvadora, monopólio da Igreja, não há salvação possível. SS Bento XVI confirmará a precisão teológica do que estou dizendo.

Sempre pensei que, segundo a teologia da igreja, o fato de uma mulher ficar grávida, casada ou não casada, é sinal de que Deus deseja a dita gravidez. Pois se ele não a desejasse, a gravidez não aconteceria. Deus é onipotente e nada do que acontece, acontece fora do exercício do seu poder. É somente isso que explica a interdição do aborto em qualquer situação, inclusive nos casos em que o feto não tem cérebro — situação em que o famoso “livre arbítrio” não pode ser invocado para tirar a culpa de Deus pelo acontecido. Uma criança que nasce sem cérebro não possui arbítrio algum sobre que lançar a culpa... O senhor haverá de convir comigo que existiria uma contradição na mente divina se Deus aprovasse a gravidez e, ao mesmo tempo, ordenasse à instituição que o representa que lhe negasse o batismo.

Imaginemos uma mulher e seu companheiro. Eles muito se amam mas não são casados na igreja. Muito embora os textos sagrados digam que Deus é amor, e o apóstolo Paulo tenha dito que o amor é a maior de todas as virtudes, o fato é que, para a teologia da Igreja, quem não casou na Igreja está num estado pecaminoso de concubinato. Ouvi de um padre, numa homilia de casamento, a seguinte afirmação: “Não é o vosso amor que faz o casamento. É o contrato...”

Os companheiros que se amam sem contrato, assim, estão em pecado e impedidos de batizar o seu filhinho. Mas aí o pai da criança morre. Agora, graças à morte do marido, a mulher não mais se encontra numa relação pecaminosa. A criança pode então ser batizada. Se o companheiro da mulher que me enviou a carta morrer, o seu filho poderá ser batizado?

De todos os Santos o de minha devoção mais forte é Santo Expedito. Ele tem a palavra “hoje” escrita na cruz que segura com a mão direita e a palavra “cras” escrita no corvo que ele esmaga com o seu pé. Santo Expedito não deixa para amanhã. O milagre acontece no mesmo dia. Pois contou-me uma piedosa senhora sobre um milagre de Santo Expedito. Uma amiga sua sofria muito nas mãos de um marido cruel. Ela orou a Santo Expedito e o seu pedido foi atendido no mesmo dia. Perguntei: “O marido se converteu?” “Não”, ela me respondeu. “Ele se enforcou...” Trata-se do primeiro suicídio sagrado de que há registro. Pergunto: “Seria adequado à mulher que me escreveu apelar para Santo Expedito? Quem é que o Santo mataria? Será que ele levaria o pai da criança a se enforcar para que a mulher saísse de sua condição de pecado, podendo então batizar o seu filhinho? Ou faria com que uma jamanta atropelasse o padre? Se o santo pedisse o meu conselho eu diria: “Atropele o padre...”

Por favor, senhor Bispo: instrua pastoralmente os seus padres informando-os de que todas as crianças vão para o céu, mesmo sem batismo, não importando que seus pais sejam católicos, protestantes, hinduístas, espíritas, umbandistas, do candomblé, budistas, xintoístas, judeus, maometanos, ateus e quantas religiões haja. Prá dizer a verdade as religiões, todas elas, não fazem a menor diferença...

Dominus vosbiscum.

Fraternalmente, Rubem Alves
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 14/02/2010

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