Moacyr Scliar*
A crônica, que é um gênero literário eminentemente brasileiro, a transcrição, para a página impressa, da informal conversa de bar, dá, àqueles que a praticam, certas liberdades. O cronista pode, diferente do jornalista, usar o pronome “eu”. Pode dar sua opinião, sua impressão, seus palpites, sem precisar calçá-los em provas ou em números. Machado de Assis, um dos primeiros cultores do gênero no Brasil, descrevia o cronista como um colibri, esvoaçando de flor em flor. Poético, sim, mas a crônica envolve certos riscos, como constatei há alguns dias.
Escrevi sobre o problema que ocorre quando, numa noite quente, o marido quer ligar o ar condicionado e a mulher não quer, ou vice-versa: “Pronto, está instalada a polêmica. E como se soluciona a divergência? Uma possibilidade, naturalmente, é dormir em quartos separados. Mas, em primeiro lugar, é preciso existir quartos separados, o que, nos reduzidos apartamentos de classe média nem sempre é possível. Sempre existe a possibilidade do sofá da sala, mas a menos que se queira acordar moído, esta não é exatamente uma boa solução. E depois, convenhamos, a cama de casal não é só um lugar para dormir. Além daquilo que está na cabeça dos imorais, é também uma forma de convivência”.
A expressão “imorais” despertou a indignação de um leitor, que me escreveu: “Para bom entendedor, você fez, com esta frase, referência às relações sexuais. Mas acredito que o sexo entre casais ou não-casais, quando permeado por compartilhamento, entrega e fidelidade absoluta, decorrentes de sentimentos de amor e respeito entre duas pessoas, não tem nada de imoral”. Ou seja: o leitor achou que eu estava falando sério quando mencionei os “imorais” (ah, a falta que fazem as aspas). E me puxou as orelhas por causa disso.
Coisa até amena, comparada à que aconteceu com o grande Luis Fernando Verissimo. Em 2002, Lula e seus assessores foram jantar num restaurante de Ipanema. Duda Mendonça, à ocasião o marqueteiro do PT, deu de presente a Lula uma garrafa de vinho Romanée-Conti, safra de 1997, orçada em mais de R$ 6 mil. O vinho consumido, a garrafa ficou exposta no restaurante, gerando muitos comentários, alguns bem agressivos. Dias depois, Verissimo publicou uma crônica a respeito: “Quem o Lula pensa que é, tomando Romanée-Conti? Gente! O que é isso? Onde é que estamos? Romanée- Conti não é pro teu bico não, ó retirante. Vê se te enxerga, ó pau-de-arara. O teu negócio é cachaça. O teu negócio é prato-feito, cerveja e olhe lá. A audácia do Lula! Sim, porque hoje é Romanée-Conti e amanhã pode ser até a Presidência da República. Gentinha que não conhece o seu lugar é capaz de tudo”.
Por incrível que pareça, numerosos leitores — mesmo sabendo que Verissimo é conhecido como intelectual de esquerda — ficaram furiosos. Acharam que ele estava falando sério, que o texto era uma repreensão ao Lula. Quatro dias depois, em 19 de outubro de 2002, Verissimo teve de publicar um texto explicando sua intenção. Disse então: “Escrever com ironia é um pouco como escrever em código. A comunicação só funciona se na outra ponta houver um decodificador”. Na ocasião, lembrou um texto no qual dizia que todos os problemas do Brasil estariam resolvidos se o povo fosse eliminado. Um leitor gostou muito, mas expressou seu receio de que, ao falar em eliminação, Verissimo estivesse usando apenas uma figura de retórica.
Por último, e para ficarmos no Rio Grande do Sul: quando a discussão sobre cotas estava no auge, a técnica administrativa Rosane Brandão, servidora da Universidade Federal de Pelotas e casada com um negro, escreveu um artigo dizendo: “Inventaram agora que os negros fazem parte da sociedade”. De novo: não foi entendida e se sentiu tão constrangida que durante dias não saiu de casa.
Não, a ironia não tem uma boa imagem. A palavra vem do grego eironeía, que significa hipocrisia, engano, fingimento. Atualmente, designa uma afirmação que, tomada em seu contexto, significa exatamente o contrário do que é dito. Algo que é apanágio dos espíritos superiores; assim, os filósofos socráticos fingiam ignorância para induzir seus adversários a exporem ideias, demonstrando então — e de maneira irônica — a falácia destas.
Na literatura, o recurso é muitas vezes utilizado, às vezes dramaticamente. Na peça de Shakespeare, Romeu encontra Julieta que, tendo tomado uma substância soporífera, está mergulhada em sono profundo, parecendo morta (um truque para que depois possa fugir com Romeu). Mas ele pensa que a moça morreu mesmo e se suicida. Julieta acorda, vê Romeu morto e, por sua vez, se mata também. Num conto famoso, o norte-americano O. Henry fala de um casal pobre, sem dinheiro para presentes de Natal. A moça corta o cabelo e vende-o a um fabricante de perucas, para assim comprar uma corrente de ouro para o relógio do marido. Mas este havia empenhado o dito relógio, adquirindo pentes para a bela cabeleira da esposa...
A ironia inspirou a Alanis Morissette uma canção muito... bem, irônica. A letra enumera várias situações irônicas, começando com: “Um homem fez 98 anos/ ganhou na loteria/ e morreu no dia seguinte” ( e deve ter sido a Mega Sena). Amigos, cuidado com a ironia. É muito irônico a gente se incomodar quando está apenas querendo fazer humor.
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*Médico. Escritor. Cronista de vários jornais.
Fonte: Correio Braziliense online, 09/02/2010
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