JOÃO PEREIRA COUTINHO*
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Terás dinheiro sem o mereceres; e, por isso, terás também uma vida de tédio e repetição
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TIVERAM um bom fim de semana? O meu foi perfeito. Só exercício físico. No sábado de manhã, aspirei a casa. Depois, limpei o pó. Lavei a louça, passei a ferro -e entretanto era domingo à noite. Existem trabalhos duros, eu sei. Mas alguém tem de os fazer.
Pena que seja eu. Há várias semanas que procuro empregada, depois das três últimas que passaram por aqui. Elas vêm, ficam alguns meses e depois partem. Não por culpa minha. Sou patrão generoso no salário, no horário, até nas exigências laborais. A culpa é da natureza humana: entre trabalhar em minha casa ou não trabalhar em nenhuma casa, qualquer ser pensante não hesita.
Claro que, por essa altura, o leitor inteligente já formulou uma questão cruel: mas, se as donzelas preferem não trabalhar, como podem viver? O leitor inteligente, apesar da inteligência, desconhece um pormenor básico: na Europa do século 21, existe um generoso "modelo social" que, apesar de estar a caminho da falência, ainda proporciona algum espetáculo terminal. Esse modelo permite que um adulto possa viver grande parte da existência sem mexer um dedo para trabalhar.
Em teoria, o subsídio de desemprego implica um compromisso do trabalhador para encontrar o dito cujo. As agências do Estado, aliás, costumam sugerir ocupações, de acordo com as competências do trabalhador potencial. Mas, na prática, tudo depende da inclinação de cada um. E a inclinação é conhecida.
As três últimas empregadas trabalharam afincadamente enquanto aguardavam pelos "papéis". Os "papéis" são os documentos de naturalização, que concedem ao novo cidadão da República vários direitos (mas, curiosamente, poucos deveres). Um dos direitos é apoio no desemprego, na doença e na velhice.
Como a doença e a velhice só costumam aparecer na fase última da vida, melhor aproveitar o desemprego na idade jovem. E elas aproveitam. Roteiro conhecido: avisam que deixarão o serviço.
Eu pergunto por quê. Ingenuamente, imagino que encontraram trabalho melhor. Ou mais bem pago. Razões válidas e meritórias. Com esperança escolástica, antecipo o dia em que uma delas dirá: "Estudar sempre foi um sonho adiado!".
Nenhuma resposta. Quando as reencontro no bairro, tempos depois, a confissão: estão no desemprego. Melhor: com o subsídio de desemprego. E qual o valor do subsídio? Um pouco melhor do que os meus salários, dizem elas, com leve reprovação. Engulo em seco. Elementar, meu caro Watson: eu não posso competir com o Estado. Concorrência desleal.
Escuto tudo com uma mistura de indignação e divertimento. E depois ainda sugiro uma ilegalidade conhecida: é possível acumular o subsídio de desemprego com o salário do emprego. Elas riem. A questão não é o dinheiro. É o trabalho. Para que trabalhar quando é possível não o fazer, ganhando na mesma?
Regresso a casa e sinto-me o último otário do mundo. Serei caso único? Não sou. Mark Steyn, na última "The New Criterion", fornece alguns números que amaciam minha solidão. Conta Steyn, em texto sobre o assustador crescimento do Estado nas sociedades ocidentais, que só no Reino Unido, desde o momento em que o New Labour conquistou o poder (1997), 5 milhões de pessoas não voltaram mais a trabalhar.
Por outras palavras: um décimo da população vive há 12 anos do cheque estatal. Um quinto das crianças britânicas cresce em casas onde nenhum adulto trabalha -um belo exemplo que se perpetuará pela descendência. No Estado de bem-estar social, é possível que um ser humano nasça, cresça, envelheça e morra sem saber o que significa trabalhar e ganhar um salário. Leio essa última frase e sinto uma vibração de simpatia e inveja na minha costela ociosa. Mas ócio com dinheiro dos outros tem um nome feio.
Diz Mark Steyn que o modelo social europeu é um caso de despesa brutal que a economia do continente não poderá suportar pelos próximos anos. Fato. Salvífico fato.
Mas o modelo não é apenas economicamente inviável; é também moralmente trágico ao condenar milhões de criaturas a vidas desérticas e bovinas, sem nenhum objetivo que possamos reconhecer como humano. Sem querer abusar de metáforas mefistofélicas, o modelo social europeu é uma tentação capital.
Uma forma de o Estado dizer: "Terás dinheiro em troca da tua alma". Terás dinheiro sem o mereceres; e, por isso, terás também uma vida de tédio e repetição. Uma sucessão de dias habitados por nada até o dia em que serás nada também.
_____________________________________________*João Pereira Coutinho (Porto, 1976) é um jornalista e comentador político português.
Frequentou a Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, acabando por se licenciar em História (na variante de História da Arte), pela Universidade do Porto. Prossegiu estudos na Universidade Católica Portuguesa, onde se doutorou em Teoria e Ciência Política Contemporânea e é, actualmente, Professor Convidado.É autor do romance Jaime e outros bichos, publicado aos dezanove anos de idade e que lhe valeu o Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro (1996). Iniciou mais tarde uma assídua colaboração na imprensa, como colunista d' O Independente (1998-2003), experiência que rendeu um livro (Vida Independente: 1998-2003, 2004), da revista Atlântico e do jornal Expresso (2004-2009). Atualmente colabora com o Correio da Manhã e com a Folha de S. Paulo (Brasil). Algumas das crónicas publicadas de 2005 a 2007 neste jornal já foram publicadas em livro (Avenida Paulista, 2007). Foi co-autor do blogue A Coluna Infame, juntamente com Pedro Lomba e Pedro Mexia, entre 2002 e 2003.
(Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre)
FONTE: Folha online, 09/02/2010
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