Denis Lerrer Rosenfield*
Um fato é frequentemente sua narrativa, ou melhor, suas
diferentes narrativas, em suas sintonias, dissonâncias e mesmo
contradições. Nosso olhar do mundo é moldado por visões perpassadas por
versões que suscitam adesões e posições, simpatias e antipatias,
conceitos e preconceitos. Eis por que em situações de conflito a disputa
pela opinião pública é de tanto valor, pois nela se tecem e articulam
alianças e oposições que são da maior relevância não somente para a
compreensão dos fatos, mas também para a orientação das ações.
O recente conflito de Israel com o grupo radical Hamas é muito bom
exemplo de como versões atropelaram claramente os fatos, dando lugar a
manifestações de simpatia ou antipatia, em que preconceitos vieram
facilmente à tona. Supostas análise e reportagens que se apresentavam
como "neutras" deram vazões a preconceitos bem arraigados. Alguns
analistas deveriam fazer análise, psicanaliticamente falando.
O conflito foi, em certas versões, apresentado como uma agressão
israelense que teria "assassinado" o comandante militar do Hamas, Ahmed
Jabari. Seria, nessa perspectiva, uma iniciativa israelense. Ora, o
Hamas vinha bombardeando com foguetes o Estado de Israel, não dando
trégua a seus cidadãos. O que era esperado? A inércia e a renúncia à
autodefesa? O que faria qualquer cidadão que tivesse tiros diários
contra a sua casa? Deveria simplesmente resignar-se, dormir num
subterrâneo?
A ação israelense foi apresentada como um "assassinato", e não como a
morte de um inimigo com mãos manchadas de sangue. Era público e notório
que Jabari fora responsável por uma série de assassinatos - dos quais,
aliás, jamais negou sua responsabilidade. Logo, o responsável por
assassinatos foi "assassinado". Aliás, o próprio Estado de Israel postou
um vídeo mostrando a explosão de seu veículo, como alvo propriamente
militar.
Outro fato particularmente notório é a insistência com que se repete,
continuamente, o número de mortes de civis do lado palestino. É como se
esse fosse o critério dirimente para a discriminação dos "justos" e
"injustos". Nesse sentido, o Hamas tem sabido manipular a mídia por meio
de jornalistas coniventes.
Uma tática militar usada pelo Hamas consiste na utilização de escudos
humanos, de modo que um alvo militar termine atingindo civis. As Forças
Armadas de Israel não têm como alvos os civis, mas os militares, onde
quer que se escondam. E eles se escondem em residências civis, em zonas
altamente urbanizadas, lá armazenando armas e munições, com o objetivo
de que civis sejam mortos para que apareçam midiaticamente como
"vítimas". Diz-se que o quartel-general do Hamas se encontra nos
subterrâneos de um hospital, o que fala por si mesmo de sua preocupação
com os "civis". Por outro lado, os foguetes lançados contra Israel têm
como alvo os civis, precisamente.
Na contabilidade de mortes civis, as fontes do Hamas não só omitem
esses dados, como, por si sós, não têm nenhuma credibilidade. No último
confronto em Gaza, a própria ONU foi conivente com a mentira. Foi
noticiado com estardalhaço que as Forças Armadas israelenses haviam
bombardeado sua sede local. Isso foi repetido à exaustão. Quando o
desmentido foi feito pela própria ONU, um mês depois, a antipatia pela
ação israelense já estava arraigada. Alguns jornais, após terem
publicado manchetes sobre a "destruição da sede da ONU por forças
israelenses", relegaram a páginas interiores minúsculos espaços de
restabelecimento da verdade dos fatos.
Qual seria, pois, a diferença entre as fontes noticiosas israelenses e
do Hamas? A credibilidade advinda de uma democracia, contrastando com
um regime político de tendências teocráticas. Informações podem ser
verificadas ou não. Israelenses podem manifestar-se livremente contra
suas Forças Armadas, criticar, por exemplo, a condução militar contra
Gaza ou discordar da inércia das autoridades de seu país, caminhando
para um verdadeiro acordo com os palestinos. Nada disso é possível nos
territórios controlados pelo Hamas.
Dado particularmente significativo foi a barbárie divulgada em foto
por militantes do Hamas contra supostos colaboradores israelenses.
Assassinados na rua, com a maior crueldade, foram depois mostrados sendo
arrastados por motos, como um exemplo. Ora, exemplo de quê? De
crueldade? Se fossem mesmo espiões, deveriam ser julgados, com direito à
defesa.
Particularmente gritante é a simpatia pela Turquia, cujas
manifestações anti-Israel são acolhidas acriticamente. Ela fala de
"massacre", "limpeza étnica", etc. Trata-se de um caso particularmente
patológico, exemplo de esquizofrenia profunda. Limpeza étnica fez o
Estado turco contra os armênios, assassinando milhões deles, num
genocídio inaugural do século 20. Até hoje a Turquia se recusa a
reconhecer tal fato. Ademais, a Turquia não reconhece internamente a sua
minoria curda, recusando-lhe um Estado autônomo. Os curdos não possuem
Estado e são sistematicamente agredidos. Os ataques não respeitam nem as
fronteiras dos países vizinhos, com incursões militares e bombardeios,
no Iraque e na Síria, contras as populações curdas. E agora se arvora em
representante dos palestinos. Por que não reconhece o Estado curdo? Por
que não interrompe seus assassinatos, bombardeios e incursões
militares?
Convém não esquecer que o Hamas, ao contrário do governo palestino da
Cisjordânia, liderado por Mahmoud Abbas, não reconhece o Estado de
Israel e prega sua destruição pela violência. A convivência entre
israelenses e palestinos, baseada em dois Estados independentes, não se
poderá concretizar senão sob a forma de reconhecimento mútuo, o que
passa, evidentemente, pelo abandono dos preconceitos recíprocos de ambas
as partes.
Não é denegrindo o Estado de Israel nem apregoando a sua extinção que
se chegará lá. O antissionismo é uma forma recente de antissemitismo
politicamente correto. Não é com ele que se alcançará a paz.
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* PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS
E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR
E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR
Fonte: Estadão on line, 02/12/2012
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