segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Narrativas

Denis Lerrer Rosenfield*
 
 
Um fato é frequentemente sua narrativa, ou melhor, suas diferentes narrativas, em suas sintonias, dissonâncias e mesmo contradições. Nosso olhar do mundo é moldado por visões perpassadas por versões que suscitam adesões e posições, simpatias e antipatias, conceitos e preconceitos. Eis por que em situações de conflito a disputa pela opinião pública é de tanto valor, pois nela se tecem e articulam alianças e oposições que são da maior relevância não somente para a compreensão dos fatos, mas também para a orientação das ações.

O recente conflito de Israel com o grupo radical Hamas é muito bom exemplo de como versões atropelaram claramente os fatos, dando lugar a manifestações de simpatia ou antipatia, em que preconceitos vieram facilmente à tona. Supostas análise e reportagens que se apresentavam como "neutras" deram vazões a preconceitos bem arraigados. Alguns analistas deveriam fazer análise, psicanaliticamente falando.

O conflito foi, em certas versões, apresentado como uma agressão israelense que teria "assassinado" o comandante militar do Hamas, Ahmed Jabari. Seria, nessa perspectiva, uma iniciativa israelense. Ora, o Hamas vinha bombardeando com foguetes o Estado de Israel, não dando trégua a seus cidadãos. O que era esperado? A inércia e a renúncia à autodefesa? O que faria qualquer cidadão que tivesse tiros diários contra a sua casa? Deveria simplesmente resignar-se, dormir num subterrâneo?

A ação israelense foi apresentada como um "assassinato", e não como a morte de um inimigo com mãos manchadas de sangue. Era público e notório que Jabari fora responsável por uma série de assassinatos - dos quais, aliás, jamais negou sua responsabilidade. Logo, o responsável por assassinatos foi "assassinado". Aliás, o próprio Estado de Israel postou um vídeo mostrando a explosão de seu veículo, como alvo propriamente militar.

Outro fato particularmente notório é a insistência com que se repete, continuamente, o número de mortes de civis do lado palestino. É como se esse fosse o critério dirimente para a discriminação dos "justos" e "injustos". Nesse sentido, o Hamas tem sabido manipular a mídia por meio de jornalistas coniventes.

Uma tática militar usada pelo Hamas consiste na utilização de escudos humanos, de modo que um alvo militar termine atingindo civis. As Forças Armadas de Israel não têm como alvos os civis, mas os militares, onde quer que se escondam. E eles se escondem em residências civis, em zonas altamente urbanizadas, lá armazenando armas e munições, com o objetivo de que civis sejam mortos para que apareçam midiaticamente como "vítimas". Diz-se que o quartel-general do Hamas se encontra nos subterrâneos de um hospital, o que fala por si mesmo de sua preocupação com os "civis". Por outro lado, os foguetes lançados contra Israel têm como alvo os civis, precisamente.

Na contabilidade de mortes civis, as fontes do Hamas não só omitem esses dados, como, por si sós, não têm nenhuma credibilidade. No último confronto em Gaza, a própria ONU foi conivente com a mentira. Foi noticiado com estardalhaço que as Forças Armadas israelenses haviam bombardeado sua sede local. Isso foi repetido à exaustão. Quando o desmentido foi feito pela própria ONU, um mês depois, a antipatia pela ação israelense já estava arraigada. Alguns jornais, após terem publicado manchetes sobre a "destruição da sede da ONU por forças israelenses", relegaram a páginas interiores minúsculos espaços de restabelecimento da verdade dos fatos.

Qual seria, pois, a diferença entre as fontes noticiosas israelenses e do Hamas? A credibilidade advinda de uma democracia, contrastando com um regime político de tendências teocráticas. Informações podem ser verificadas ou não. Israelenses podem manifestar-se livremente contra suas Forças Armadas, criticar, por exemplo, a condução militar contra Gaza ou discordar da inércia das autoridades de seu país, caminhando para um verdadeiro acordo com os palestinos. Nada disso é possível nos territórios controlados pelo Hamas.

Dado particularmente significativo foi a barbárie divulgada em foto por militantes do Hamas contra supostos colaboradores israelenses. Assassinados na rua, com a maior crueldade, foram depois mostrados sendo arrastados por motos, como um exemplo. Ora, exemplo de quê? De crueldade? Se fossem mesmo espiões, deveriam ser julgados, com direito à defesa.
Particularmente gritante é a simpatia pela Turquia, cujas manifestações anti-Israel são acolhidas acriticamente. Ela fala de "massacre", "limpeza étnica", etc. Trata-se de um caso particularmente patológico, exemplo de esquizofrenia profunda. Limpeza étnica fez o Estado turco contra os armênios, assassinando milhões deles, num genocídio inaugural do século 20. Até hoje a Turquia se recusa a reconhecer tal fato. Ademais, a Turquia não reconhece internamente a sua minoria curda, recusando-lhe um Estado autônomo. Os curdos não possuem Estado e são sistematicamente agredidos. Os ataques não respeitam nem as fronteiras dos países vizinhos, com incursões militares e bombardeios, no Iraque e na Síria, contras as populações curdas. E agora se arvora em representante dos palestinos. Por que não reconhece o Estado curdo? Por que não interrompe seus assassinatos, bombardeios e incursões militares?

Convém não esquecer que o Hamas, ao contrário do governo palestino da Cisjordânia, liderado por Mahmoud Abbas, não reconhece o Estado de Israel e prega sua destruição pela violência. A convivência entre israelenses e palestinos, baseada em dois Estados independentes, não se poderá concretizar senão sob a forma de reconhecimento mútuo, o que passa, evidentemente, pelo abandono dos preconceitos recíprocos de ambas as partes.
Não é denegrindo o Estado de Israel nem apregoando a sua extinção que se chegará lá. O antissionismo é uma forma recente de antissemitismo politicamente correto. Não é com ele que se alcançará a paz.
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* PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS
E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR
Fonte: Estadão on line, 02/12/2012
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