sexta-feira, 1 de março de 2013

É o fim de um mundo?

Mino Carta*

Santa Maria del Fiore. A cúpula mais bela, sem ostentação e jactância. Foto: Cosmo Condina /Tips /Photononstop /AFP

Santa Maria del Fiore. A cúpula mais bela, sem ostentação e jactância. Foto: Cosmo Condina /Tips /Photononstop /AFP

Quinhentos degraus, se não me engano, separam o chão de São Pedro do terraço circular que cerca a cúspide da cúpula de Michelangelo. Galguei-os aos 8 anos de idade conduzido por minha avó paterna, Adele, romana de Roma. Escalada audaciosa e jamais repetida, e lá do alto me pareceu contemplar o Universo.

À de São Pedro prefiro a cúpula de Santa Maria del Fiore, em Florença, obra de Filippo Brunelleschi, remonta aos começos do século XV e é a primeira erguida pelo homem. Esta me ficou na memória na mocidade, e minha emoção foi puramente estética. Já não cursava o primário no colégio das Marcelinas, as boas freiras com suas toucas graciosas a despeito dos acabamentos em renda negra.

Estudei no colégio das Marcelinas porque meu pai, anticlerical convicto, via ali um reduto antifascista. E era, clara e corajosamente. Não obrigavam os alunos a participar nas manhãs de -sábado dos desfiles organizados em praça pública, a reunirem uma patética garotada de uniforme não bélico, belicoso. E, em pleno vigor das leis raciais que mancomunaram Mussolini a Hitler, abrigavam meninos e meninas judeus em classes mistas, isentando-os das aulas de catecismo, quando iam ao jardim para brincar entre as árvores. Para minha inveja.

Não duvidava, então, a despeito da ojeriza irreversível ao catecismo, da condição do papa na qualidade de vigário do Altíssimo. Meu pai permitia-se insinuar brandas dúvidas, sem êxito. Eu mostrava talento para coroinha e voltava miradas luzidias na direção de uma coleguinha judia de olhos amendoados e sobrenome Avigdor.
A respeito do papa, como númeno e como fenômeno, tenho lido até a fartura nos últimos tempos e não nego que haja razões para tanto. Ocorre, porém, que Bento XVI não é, na minha visão, aquele que os analistas pretendem. Trata-se de um ancião alquebrado, envelhecido apressadamente no mister, e isso é inegável. Que a imponência dos problemas a enfrentar o tenha levado à renúncia é admissível, e até provável. Certo é que apareceu o homem comum, frágil e impotente, obviamente incapaz de representar o Criador, como supunha eu ao encarar o Universo do alto de São Pedro.

A renúncia de Ratzinger, empedernido, irredutível conservador, não é um sinal inesperado de modernidade, é a confissão da derrota, pessoal e da anacrônica monarquia por direito divino que se mantém impávida desde a oficialização do cristianismo como religião de Estado pelo imperador Constantino, pouco além do ano 300 d.C.

Cada vez mais entregue a Terra à prepotência das oligarquias do poder pelo poder, e de tudo que as favorece, não deixará de haver empenho  fervoroso em perpetuar o quanto  aí está -para ver como fica. Mais ou menos como se dá no enfrentamento da crise econômica que abala a humanidade em peso. Em vez de combater quem a provoca, as soluções postas em prática visam a lhe facilitar a vida. Em lugar de produzir bens, ou saber e conhecimento, multiplicam-se mentiras grosseiras e grana para poucos, empulhações vulgares (como a arte contemporânea, insisto neste ponto, como sinal da imbecilização do planeta) e os privilégios dos emires, autênticos ou recém-construídos.

Bento XVI desistiu de sua habitual arrogância, que o conduziu intocada até o papado, e entregou os pontos. Aplastado, deu as pancadas de praxe no tablado. Ganha um futuro em sossego, sem exclusão dos pés metidos em pantufas marrons. Prada, é o caso de apostar. Espero que o assaltem os pesadelos noites adentro, e mesmo ao longo do dia. No mais, não vou arregalar os olhos se o futuro papa for igual a Ratzinger na confirmação da insustentável medievalidade da Igreja Católica Apostólica Romana.
Reveste-se o momento da força avassaladora e imponderável dos símbolos, manifestada inclusive na capacidade de anexar situações aparentemente diversas, de aprisioná-las em um único contexto, atadas à circunstância, agrilhoadas sem perceber, vítimas do destino fatídico. Estaríamos diante de mais uma encruzilhada global? Não se trataria do fim do mundo, mas do fim de um mundo, e talvez seja aprazível figurar na assistência. Quem resiste, perderia. Ou ganharia, para ser ainda poder dentro dele, largo tempo de sombra espessa.
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Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde. redacao@cartacapital.com.br
Fonte:  http://www.cartacapital.com.br/internacional/e-o-fim-de-um-mundo/

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