Thomaz Wood Jr.*
Foto: Istockphoto
O ambiente acadêmico é um palco onde atuam diferentes grupos de interesse e as forças e pressões resultantes nem sempre conduzem aos nobres ideais sociais.
The Lancet é
uma das mais tradicionais, conhecidas e respeitadas publicações
científicas da área médica. A revista foi criada pelo cirurgião inglês
Thomas Wakley no primeiro quartil do século XIX. É o The New York Times das revistas acadêmicas: se lá foi publicado, é porque é verdade e deve ser lido, quase sempre…
Além de publicar os mais relevantes estudos da medicina, a revista
não se priva de assumir posições firmes e provocar polêmicas. Em 2003,
um editorial propôs, sem meias-palavras, o banimento do tabaco no Reino
Unido. Em 2009, a revista acusou o papa Bento XVI de distorcer
evidências científicas para promover a doutrina católica sobre a
castidade na prevenção da Aids. Um ano depois, um artigo da revista
elegeu como alvo o álcool, acusando-o de causar problemas mais graves do
que aqueles provocados por algumas drogas ilícitas.
Agora um editorial publicado no início de fevereiro atrai a atenção
do leitor com o instigante título: qual é o propósito da pesquisa
médica? Em pauta, a fragilidade do processo de construção de
conhecimento na medicina. Pode não ter sido a intenção do autor, mas as
provocações contidas no texto ultrapassam as fronteiras da pesquisa
médica e poderiam ser dirigidas a outros campos científicos.
Segundo o editorialista, a cada ano são investidos 160 bilhões
de dólares em pesquisas na área médica. Entretanto, suspeita-se que o
benefício social seja no mínimo duvidoso. Em 2009, Ian Chalmers e Paul
Glasziou, em texto publicado na própria The Lancet, estimaram que
85% das pesquisas realizadas desperdiçam recursos ou são ineficientes.
As deficiências abrangem quatro dimensões: a falta de relevância para
médicos e pacientes, a inadequação do escopo e dos métodos, a
dificuldade de acesso aos resultados, e restrições relacionadas à
imparcialidade e à significância clínica. Em outras palavras, apenas 15%
das pesquisas são confiáveis e relevantes.
Ainda segundo o editorialista, quando se pergunta qual o propósito da
pesquisa médica, a maioria das pessoas responde sem vacilar: “Avançar o
conhecimento para o bem da sociedade, para melhorar a saúde das pessoas
em todo o mundo ou encontrar melhores maneiras para tratar e prevenir
doenças”. A realidade, entretanto, é bem diferente. O ambiente acadêmico
é um palco onde atuam diferentes grupos de interesse e as forças e
pressões resultantes nem sempre conduzem aos nobres ideais citados no
início do parágrafo.
O sistema de financiamento à pesquisa costuma adotar procedimentos
burocráticos e enfatiza resultados de curto prazo nem sempre coerentes
com as características da investigação proposta. A avaliação por pares e
especialistas é repetidas vezes opaca e demorada. Empresas
farmacêuticas amiúde patrocinam pesquisas em busca do máximo retorno
para seu investimento. E as próprias instituições de pesquisa, de
mentalidade empresarial, pensam cada vez mais em termos de desempenho,
frequentemente utilizando o número de publicações científicas como
indicador de sucesso.
O editorialista encerra seu texto com uma chamada para ação:
chegou a hora de fazer uma reflexão crítica sobre o estado das coisas e
repensar a forma como a pesquisa é conduzida: primeiro, os pesquisadores
precisam se lembrar do propósito real da ciência; segundo, é necessário
criar processos participativos capazes de definir que pesquisas são
necessárias e o impacto esperado; terceiro, as instituições de pesquisa e
as universidades devem avaliar pesquisados com base em resultados de
longo prazo; e, quarto, os próprios pesquisadores devem se lembrar de
por que escolheram suas carreiras. Afinal, é deles a responsabilidade de
defender um ambiente propício à pesquisa.
A provocação da revista The Lancet não causa surpresa.
Trata-se de mais um sinal do mal-estar resultante do estado das coisas
na torre de marfim. Há tempos vêm surgindo, nas mais diversas áreas e
latitudes, críticas e apelos a mudanças. As universidades modernas
nutriram uma elite peculiar de pesquisadores, uma classe sofisticada,
apartada do mundo ao redor e zelosa de seus pequenos privilégios. Onde
ocorreu a tentativa de domesticá-la pela adoção de uma pletora de
práticas de negócios parece ter gerado mais efeitos colaterais do que
resultados positivos.
Reformar o sistema não é tarefa trivial. Sua missão foi desvirtuada,
recursos estão sendo mal utilizados, mentes brilhantes estão sendo
desperdiçadas e o impacto social fica aquém das mais justas
expectativas. Nada disso, entretanto, parece ser suficiente para fazer
frente a um modelo que soma pequenas inércias para criar um gigante
imune e entorpecido deitado em berço esplêndido.
------------
* Thomaz Wood Jr. escreve sobre gestão e o mundo da administração.
thomaz.wood@fgv.br
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/27/02/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário