sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Ainda as manifestações de junho

Armando Castelar Pinheiro*
 
Ganhei o livro de um amigo: "Ajuda a explicar um pouco do que está acontecendo por aqui", disse-me ele. Intitulado "Networks of Outrage and Hope" (Redes de Revolta e Esperança), de Manuel Castells, o livro saiu ano passado. Vale a leitura, especialmente por dois de seus ingredientes. Primeiro, a cuidadosa descrição dos movimentos populares ocorridos na Tunísia, Islândia, Egito, Espanha e EUA. Segundo, o esforço de sistematizar a forma como essas manifestações começam e se desenvolvem.

Para Castells, as dificuldades econômicas e a percepção de que o sistema político tem um déficit de representação são dois dos principais motivos das manifestações dos últimos três anos. O elevado desemprego entre os jovens é o problema econômico principal, ainda que a alta do preço dos alimentos nos países árabes e a crise financeira na Europa e nos EUA também sejam relevantes. Não é esse o caso do Brasil, pelo menos ainda.

Em relação à crise de representação, Castells aborda dois fenômenos. Um, a ideia de que as regras eleitorais são feitas por políticos com o objetivo de se preservarem no poder. Há, claro, diferenças entre as ditaduras árabes e as "democracias" ocidentais, mas a percepção de que as regras e as políticas são mais orientadas para os interesses dos próprios políticos e das elites empresariais e financeiras que financiam suas campanhas é comum a todos os casos.

Dificuldades econômicas e sistema político 
com déficit de representação são dois 
dos motivos dessas revoltas 

O segundo fenômeno é a forma horizontal e sem líderes com que os manifestantes se organizam, em claro contraste com o sistema político e mesmo revoltas do passado. A internet é o grande veículo que permite a comunicação e a organização de protestos respeitando essa horizontalidade. Mas ela também está presente na organização dos manifestantes enquanto estes ocupavam espaços urbanos, da Praça Tahrir, no Cairo, ao Parque Zuccotti, em Nova York. A interação entre a ocupação do espaço físico e das redes sociais é, aliás, um tema recorrente no livro.

Por trás dessa horizontalidade está o princípio de que cada um representa a si mesmo, e apenas a si. Não há porta vozes, nem líderes. Essa forma de organização é incompatível com a vida partidária e mesmo com organismos de representação, como os sindicatos. Isso significa que, ainda que determinados grupos políticos possam se beneficiar dessas manifestações, é quase impossível cooptá-las. Se algum político ganha com os protestos é por acaso, porque suas propostas coincidem com as demandas dos manifestantes.

Mas que demandas são essas? Um traço comum à maioria dos movimentos é a variedade de demandas. No Brasil não foi diferente: da repulsa à "cura gay" à cobrança de uma saúde "padrão-FIFA", havia de tudo, ainda que o tema da corrupção tenha se destacado. Não há, porém, uma agenda de demandas objetivas, passíveis de serem entregues pelo governante dentro do seu mandato. Para Castells, essa falta de objetividade é ao mesmo tempo uma fraqueza e um ponto forte das manifestações. Uma fraqueza, pois sem uma agenda objetiva é difícil partir para ações concretas. Um ponto forte, pois ao abarcar pessoas com demandas tão variadas as manifestações ganham corpo e ficam mais difíceis de cooptar.

Assim, os protestos não visam conquistar o poder, de acordo com as regras existentes (eleições) ou alterando-as (revoluções). O seu grande impacto é sobre o sistema de valores sociais. No Brasil isso pode ser observado em relação ao tema da corrupção. Os manifestantes não querem mais uma lei punindo os corruptos, mas que os políticos se comportem de forma ética.

Não obstante, enfatiza Castells, o que faz as pessoas saírem "do sofá para as ruas" não é a análise racional dos problemas econômicos, sociais e de representação, mas as emoções. Revolta com o que está errado nas vidas de cada um e esperança de que é possível mudar o mundo para melhor. A revolta vem da humilhação, do tratamento indigno. A esperança, de olhar o exemplo dos outros e ver que é possível mudar.

Em torno das emoções giram outros dois temas: a violência e a mídia. A repressão contra as primeiras manifestações foi um estopim importante para manifestações ainda maiores em vários países. Mas o tema da violência vai além, incluindo a forma como os manifestantes lidam com ela, seja protestando, seja reagindo à repressão.

Sobre a mídia, Castells enfatiza a relação entre as novas mídias, criadas pela internet e pelos celulares com câmeras, e a mídia tradicional. As primeiras às vezes geram material para os veículos tradicionais, mas são também essenciais para garantir uma cobertura mais isenta das manifestações. A mídia tradicional reage mais lentamente e em muitos casos dá uma cobertura parcial dos fatos, mas é central para que as mensagens cheguem ao grande público e que a transformação de valores possa ocorrer.

É cedo para dizer o quanto e como essas manifestações vão mudar a sociedade. A sensação que fica da leitura de Castells é que esse processo ainda não acabou. Parece-me que esse é claramente o caso do Brasil.
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*Armando Castelar Pinheiro é coordenador de Economia Aplicada do IBRE/FGV e professor do IE/UFRJ. Escreve mensalmente às sextas-feiras.

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