José Tolentino Mendonça*
Há uma estação no nosso caminho em que o simples e o
complexo convivem numa harmonia que nos ajuda a perceber mais
profundamente a promessa profética de que o lobo e o cordeiro passearão
juntos. A verdade é que, por muito tempo, olhamos para essas
realidades em contraposição. Orientamos a nossa vida no desejo de uma
coisa ou de outra, numa visão balizada, tranquilamente dicotómica, por
acreditarmos que o simples e o complexo são coisas bem distintas.
À primeira vista parece que fomos criados para
verdades simples e só essas respondem cabalmente às expectativas do
coração humano. Uns dirão que a razão disso repousa unicamente na nossa
incurável necessidade de segurança, e que verdadeiramente nada é
simples, nada se colhe até ao fim num vislumbre imediato, e que o
caminho que todos fazemos é do simples (que tem de ser deixado) para
alcançar o complexo (que é o fatal ponto de chegada). E dão como
exemplo a infância, a idade das evidências. À medida que crescemos
essas evidências empalidecem, desdobram-se, diferenciam-se,
entreabrem-se, interrogam-se, dividem-se. O que parecia simples
escapa-nos, num processo de complexificação que não dominamos
completamente e que, em grande medida, acaba por se nos impor. Creio,
porém, que a experiência de que o essencial é simples, e que de modo
ainda mais simples se deixa acolher, nos acompanha até ao fim. Mas
também sei que, como existe uma conversão do coração ao modo simples
que a vida tem de se exprimir (pelo menos, em certas horas), precisamos
de trabalhar o nosso coração para aceitar, como condição de
autenticidade, a dicção complexa da vida.
Recordo aquela frase que Paulo de Tarso cunhou: «agora
vemos como num espelho, e de maneira confusa». Isto é, todas as visões
são provisórias e o nosso olhar não é senão chamado à itinerância. O
problema não é que o que nos tinham prometido ser simples depois se
torna, sem aviso, complexo. Ou que o que esperávamos complexo se
revela, desconcertantemente, simples. É necessário compreender, com
humildade, que o problema não é da realidade, mas do modo como lidamos
com ela. A questão é a da aprendizagem que o nosso olhar faz ou não faz
do real.
Para quem a quiser ouvir, a vida lança-nos o desafio
(a sugestão, a prece) de um amor sem posse. Não é o que sabíamos o mais
importante, mas o que vamos sabendo. Não é o conhecimento armazenado
de um dia que nos pode servir de mapa, mas a meditação do acontecer.
Somos convocados para peregrinar, para aferir a profundidade no
movimento, para vislumbrar através da incessante deslocação aquilo que
permanece. O nosso olhar nem sempre aceita que é pobre, mas quando
aceita, percebe finalmente aquilo que está dito num verso de Rainer
Maria Rilke e em tantos outros lugares:
«A pobreza é um grande brilho
que vem de dentro...».
São de sabedoria as palavras do místico São João da
Cruz:
«Para chegares a saborear tudo,
não queiras ter gosto em coisa
alguma.
Para chegares a possuir tudo,
não queiras possuir coisa
alguma.
Para chegares a ser tudo,
não queiras ser coisa alguma.
Para
chegares a saber tudo,
não queiras saber coisa alguma.
Para chegares
ao que queres,
hás de ir por onde não queres.
Para chegares ao que não
sabes,
hás de ir por onde sabes.
Para ires ao que não possuis,
hás de
ir por onde possuis.
Para chegares ao que não és,
hás de ir por onde
és».
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* Teólogo. Escritor português
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