Camille Paglia, uma das intelectuais públicas mais explosivas dos
Estados Unidos nos anos 1990, continua a fazer jus ao adjetivo
controversa, frequentemente associado a ela. "As mulheres precisam parar
de querer que os homens se comportem como mulheres", diz Camille em
entrevista ao Valor, uma clara alfinetada às
feministas. Eleita uma das pensadoras mais importantes do século XX,
segundo pesquisa das revistas "The Prospect" e "Foreign Policy", Camille
ganhou notoriedade quando lançou seu primeiro livro e, mais tarde,
cofundou e se tornou colunista do portal americano Salon.com.
Protagonizou acalorados debates a respeito de comportamento, feminismo,
religião, sexo, literatura, artes plásticas, cinema, música, economia e
política - tema que ultimamente perdeu centralidade em suas conversas.
Professora de humanidades e estudos midiáticos da Universidade de
Artes na Filadélfia lança neste mês no Brasil o livro "Imagens
Cintilantes - Uma Viagem através da Arte desde o Egito a Star Wars"
(editora Apicuri, 224 págs., R$ 49,00). A ideia, segundo a autora, é que
a obra funcione como uma espécie de "livro de orações", acessível a
qualquer pessoa que queira entender a importância da história da arte no
Ocidente ao longo dos últimos dois mil anos. "Livros de arte grandes e
pesados são pretensiosos, elitistas e desencorajam a leitura", diz.
A publicação traça uma linha do tempo por meio de figuras
inspiradoras - pinturas, esculturas, estilos arquitetônicos,
performances e cinema - entremeadas por uma análise que situa cada
artista e obra em um contexto histórico e social. O filme "Star Wars:
Episódio III - A Vingança dos Sith" (2005) encerra o livro. "Ninguém
reduziu a distância que separava a arte da tecnologia com maior êxito do
que George Lucas", escreve. "Há boa arte sendo produzida no mundo
inteiro atualmente, mas ela é tristemente derivativa, repete temas ou
técnicas que foram criadas há muito tempo. O trabalho de nenhum outro
artista hoje tem sequer uma fração do imenso impacto que Lucas teve na
imaginação do público em âmbito global."
"O grafite no Brasil está enraizado na
desigualdade econômica e racial: um grafite representa a voz hostil
e
vingadora dos oprimidos"
Aos 67 anos, Camille faz parte da geração de "baby boomers"
americana, que viveu intensamente a era "flower power". Sua estreia em
livro foi com "Personas Sexuais" (1990), ensaio de 700 páginas sobre a
representação artística e literária em termos de sexualidade, que se
tornou um best-seller e foi seguido de outras cinco obras, incluindo
"Sexo, Arte e Cultura Americana" (1992) e a coletânea de artigos "Vampes
e Vadias" (1994). Os anos de pesquisa conferem a ela cada dia mais
autoridade para relacionar sexo e cultura pop. Não à toa Camille assina o
texto "Theater of Gender: David Bowie at the Climax of the Sexual
Revolution" (Teatro do gênero: David Bowie no clímax da revolução
sexual), encomendado pelo Victoria & Albert Museum em 2011 para o
catálogo de "David Bowie Is", a maior exposição já realizada sobre o
artista inglês.
Em seu próximo projeto, mudará o foco: pesquisa os índios nativos
americanos de dez mil anos atrás. Para tanto, tem coletado pequenos
artefatos de pedra em florestas e riachos em sua vizinhança perto da
Filadélfia. "O foco do estudo será o sublime e cósmico culto à natureza
feito pelos índios, que é também a minha filosofia particular", conta.
Nesta entrevista, Camille fala sobre arte, relacionamento entre homem
e mulher, sua paixão pelo Brasil e a amizade com a cantora baiana
Daniela Mercury. "Tenho lido artigos simples em português, mas ainda não
consigo conversar", diz. "Há uma sincopação jazzística nas frases, até
mesmo quando escritas."
Valor: Do Egito a "Star Wars", qual foi o
critério para escolher as obras retratadas em "Imagens Cintilantes"? É
verdade que incluir o filme de George Lucas no livro não fazia parte dos
planos originalmente?
Camille Paglia: Meu objetivo era mostrar o quão
estimulante é a história da arte ao longo dos últimos dois mil anos -
para fazer que as pessoas sentissem o poder e o ímpeto da arte, assim
como a sua incrível progressão na tradição ocidental. Escolhi um exemplo
vívido de cada estilo principal e mantive cada capítulo curto para
atingir um público maior. Livros de arte grandes e pesados são
pretensiosos, elitistas e desencorajam a sua exploração. Um livro de
arte deve ser acessível, proporcionar prazer no manuseio. Apesar de o
meu livro ser bem curto, levei cinco anos escrevendo. Para o capítulo
final, eu procurava um exemplo forte de arte contemporânea, mas não
encontrei nada satisfatório. Há boa arte sendo produzida no mundo
inteiro, mas ela é tristemente derivativa - repete temas ou técnicas que
foram criadas há muito tempo pelos grandes modernistas. Pouco a pouco,
fui me convencendo de que o diretor George Lucas, autor de "Star Wars" e
pioneiro da animação digital, é, na verdade, o artista vivo mais
influente, conhecido por milhões no mundo todo. O trabalho de nenhum
outro artista hoje tem sequer uma fração do imenso impacto que Lucas
teve na imaginação do público em âmbito global.
Valor: Um dos objetivos do seu livro é que ele
funcione como uma introdução à arte para os leitores americanos,
principalmente as crianças. Que impacto acha que ele vai ter no Brasil?
Camille: O ensino de humanidades e das artes está
ficando cada vez pior em todo lugar, não só nos Estados Unidos. A
cultura dos jovens hoje é apenas a mídia de massa - televisão,
videogame, iPod, Instagram. No começo da carreira, eu me distanciei dos
professores mais velhos por celebrar a mídia de massa, que não era
considerada "séria". Mas nunca quis que a alta cultura fosse diminuída
ou marginalizada, algo que vem acontecendo com regularidade por várias
décadas. Os pais precisam acordar para o ambiente visual caótico em que
seus filhos vivem. Eles passam dias numa realidade virtual vertiginosa,
repleta de trivialidades transitórias e anúncios invasivos. As obras de
arte reunidas em meu livro foram feitas para focar e disciplinar o
olhar, induzir um senso de quietude e contemplação. Os pais devem ser
responsabilizados pela introdução de seus filhos à arte e meu livro é um
guia simples e acessível para isso. Eu o imagino como um breviário,
como nas missas católicas, na minha religião da arte.
Valor: A arte pop matou a pintura?
Camille: O que matou a pintura foram as excitantes
novas formas multimídia - como instalações de arte, arte em vídeo e arte
performática. Um exemplo excelente foi "Tropicália", obra radical de
Helio Oiticica exibida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em
1967. Os artistas hoje têm muito meios para trabalhar. O prestígio e a
importância da pintura, a rainha das belas-artes, está decaindo há meio
século e infelizmente também está desaparecendo a habilidade simples de
desenhar. O que a arte pop matou de verdade foi a vanguarda.
Praticamente não sobrou mais nada que seja vanguarda hoje. A arte
experimental se tornou uma brincadeira infantil e ridícula. Meu herói,
Andy Warhol, que começou como um ilustrador comercial fazendo anúncios
de sapatos femininos, acabou para sempre com o caráter de oposição que
tantos grandes artistas cultivaram heroicamente contra a sociedade
burguesa depois da rebelião contra a revolução industrial do fim do
século XVIII. A glorificação dos ícones capitalistas - latas de sopa
Campbell's ou estrelas de Hollywood como Marilyn Monroe - foi vista
inicialmente por outros artistas como uma traição ultrajante dos valores
deixados pela arte de vanguarda. A "diversão" presente na arte pop -
como nas tiras cômicas ampliadas de Roy Lichtenstein - era considerada
um insulto aos terríveis sacrifícios feitos pelos pintores de vanguarda,
que tiveram de enfrentar pobreza, rejeição e até suicídio, como os
expressionistas abstratos da geração anterior.
Valor: No Brasil há um forte debate,
principalmente em São Paulo, acerca do grafite e da pichação. Qual é a
sua opinião a respeito desse tipo de arte urbana?
Camille: Houve uma grande controvérsia nos Estados
Unidos envolvendo o grafite nos anos 60 e 70. Alguns o viam como uma
forma de arte popular, enquanto outros o enxergavam como vandalismo e
degradação do espaço público. Não há dúvida de que o melhor grafite
criou um novo estilo caligráfico, fluente e dinâmico, que influenciou o
design gráfico, assim como as belas-artes. No entanto, grafite em
quantidade excessiva ou como desfiguração brutal de trens, ônibus e
arquitetura é claramente o sintoma de uma instabilidade social mais
profunda. O grafiteiro está violando de maneira agressiva o espaço
público e, com efeito, urinando nele e nas autoridades governamentais
como um gesto niilista de desprezo. O grafite moderno teve origem na
Filadélfia e em Nova York, mas era controlado por esforços sistemáticos
dos governos de cada cidade. Em 1984, um programa de artes em mural
surgiu da Philadelphia Anti-Graffiti Network, e os resultados foram
surpreendentes. Hoje há inúmeros murais, gigantes e coloridos, que
representam a história e a cultura afro-americana e latina do lado de
fora de prédios por toda a Filadélfia, onde o grafite hoje ficou mais
raro. O problema do grafite no Brasil está enraizado na enorme
desigualdade econômica e racial; um grafite representa a voz hostil e
vingadora dos oprimidos. A Itália também, com a piora da economia, está
infestada pelo grafite. Em março, quando viajei àquele país para o
lançamento do meu livro, fiquei horrorizada com os quilômetros de lojas e
prédios desfigurados - a maioria deles feita nos últimos sete anos. Fui
informada de que a situação é ainda pior em outros lugares, como na
histórica universidade da cidade de Bolonha, onde muitos jovens não
respeitam sua herança cultural. Espero que a ascensão internacional do
grafite ilegal não seja um sintoma do colapso cultural, em que gangues
de rua amorais tomam o controle da sociedade, como na obscura visão de
futuro apresentada por Anthony Burgess em "Laranja Mecânica".
"No Brasil, todo mundo tem exatamente o mesmo
nível de energia que eu. E até mais!", diz Camille Paglia,
que já veio
sete vezes ao país
Valor: A senhora já esteve no Brasil sete vezes e também estuda português. Como é a sua relação com o país?
Camille: Fui ao país sete vezes desde 1996 e adoro!
No momento em que desço do avião, fico muito feliz em estar entre
brasileiros, com quem me sinto completamente em casa. Nos outros lugares
aonde vou, preciso tomar cuidado para não exagerar com a minha energia.
Mas, no Brasil, todo mundo tem exatamente o mesmo nível de energia que
eu - e até mais! E, sim, sou fascinada pelo português brasileiro, que eu
considero livre e aberto - comparado à formalidade e até à frieza do
português de Portugal. Há uma sincopação jazzística nas frases em
português, até mesmo quando escritas. Ano a ano, vou lentamente
expandindo meu vocabulário, escutando letras de música e lendo artigos
simples em revistas, jornais e sites brasileiros. No entanto, ainda
tenho problema com a conversação, que é rápida demais para mim.
Valor: A senhora pesquisa música brasileira? Poderia falar mais sobre a sua amizade com a cantora baiana Daniela Mercury?
Camille: Estou constantemente estudando a magnífica
história da música brasileira, sobre a qual costumo falar com meus
alunos. Fiquei particularmente atraída pelo estilo sincretista de
Carlinhos Brown no seu auge criativo. Depois de fazer uma palestra em
Salvador, em 2008, escrevi um artigo longo sobre Daniela Mercury para o
Salon.com. Ela generosamente me convidou para o Carnaval seguinte,
quando a encontrei pela primeira vez e participei de seu trio elétrico.
Nos tornamos amigas e nada mais. Continuo a admirar profundamente as
realizações de Daniela durante duas décadas de música, mas devo admitir
que estou surpresa e preocupada com suas escolhas artísticas recentes.
Mantenho uma amizade muito próxima com o ex-marido dela, Marco Scabia,
um homem da mais alta espiritualidade e elegância.
Valor: Que análise a senhora faz da música pop americana? Por que considera Rihanna uma artista "verdadeira"?
Camille: O mercado de música americano está dominado
por uma forma muito comercial de hip-hop no momento. O rap prosperou
por 35 anos, mas se tornou um clichê, ficou muito previsível. No
entanto, achei o disco mais recente de Eminem, "The Marshall Mathers LP
2", muito forte em termos de poética e escrevi uma matéria de capa sobre
o álbum para a revista "Sunday Times" de Londres. Também gosto muito do
Black Keys. Com a sua complexa técnica de "overdubbing" [sobreposição
de camadas de sons], Dan Auerbach se transforma em um mago da guitarra, e
considero sua autoexposição emocional muito tocante. Beyoncé é uma
cantora e dançarina incrível, mas não tem nada a dizer. Suas
performances são extremamente calculadas e artificiais. Rihanna, por
outro lado, é hipersensível e introspectiva, tem uma combinação
misteriosa de personalidade assertiva e extravagante com uma tímida
vulnerabilidade e melancolia. Adoro o senso fashion de Rihanna e o seu
dom para a comunicação silenciosa com as lentes dos paparazzi. Acompanho
a vida social dela - e suas intermináveis festas em praias e clubes,
seus flertes com homens e mulheres - no "Daily Mail" on-line de Londres.
A música britânica é muito mais vibrante agora do que a americana. Há
cantoras ótimas e apaixonadas, como Adele, e bandas de rock vigorosas
como Arctic Monkeys.
Valor: A senhora disse que muitas mulheres não
se dão conta do quão vulneráveis ficam ao usar roupas sexy em público.
Acha que a mulher precisa se preocupar com o que veste?
Camille: Chamo minha filosofia de "street-smart
feminism". Acho que as mulheres têm o direito absoluto de usar o que
quiserem em público - até mesmo nada -, mas também precisam ser
totalmente realistas quanto aos perigos do mundo, que nunca serão
totalmente erradicados. As mulheres precisam ficar alertas às reações
extremas que a beleza ou a nudez podem causar e devem ter controle sobre
a própria segurança e estar preparadas para se defender. Infelizmente,
muitas mulheres, incluindo algumas feministas, são assustadoramente
ingênuas quanto à natureza humana. Para cada 99 homens racionais e
confiáveis, que têm uma conduta ética, há um pervertido, criminoso
psicótico, que é conduzido por seus instintos animais primitivos de
dominar e destruir. O clássico filme "Psicose" [1960], de Alfred
Hitchcock, foi baseado em um caso real de assassino sanguinário. As
mulheres precisam parar de esperar por figuras paternalistas que as
protejam. Que jeito mais reacionário de pensar! As feministas modernas
devem ser independentes e autoconfiantes. É uma fantasia burguesa pensar
que o mundo pode ser completamente seguro, especialmente nas ruas. Os
homens gays sempre entenderam os perigos da rua - e até os consideram
eroticamente excitantes. Se as mulheres querem direitos iguais, também
precisam aceitar que precisam ser responsáveis à altura.
"O homem obediente que humildemente lava a
roupa pode não mais excitar a sua mulher na cama", afirma a autora de
"Personas Sexuais"
Valor: A senhora costuma dizer que não há mais
espaço para o desenvolvimento de características masculinas nos homens
desde o ensino fundamental e, por outro lado, as mulheres estão se
tornando desinteressantes e até infelizes, mesmo que invistam em
cuidados estéticos e sejam bem-sucedidas no trabalho. Nesse cenário,
como homens e mulheres contemporâneos podem se relacionar?
Camille: Parece estar havendo uma diminuição no
nível de satisfação entre os sexos na sociedade ocidental. Os homens de
classe média, que trabalham em computadores nos escritórios, estão
fazendo o mesmo que as mulheres e acabaram perdendo qualquer identidade
ou habilidade especial masculina. Além disso, os homens estão sob uma
forte pressão de suas mulheres ou namoradas para se "comunicar"
constantemente - um método feminino de falar muito que só os homens gays
entendem e no qual são especialistas. As mulheres precisam parar de
querer que os homens se comportem como mulheres. O maior problema com as
relações contemporâneas não é uma questão de gênero, mas a transição
histórica de família grande que reúne várias gerações diferentes para
uma família nuclear com um pai e uma mãe. A família grande era um time,
em que cuidar da casa, das crianças e das pessoas mais idosas era uma
tarefa dividida entre todos em uma atmosfera de comunidade. Mas, hoje, o
pai e a mãe se embaralham, tentando desesperadamente realizar as
tarefas domésticas enquanto sua vida profissional está em outro lugar,
em um escritório distante.
Valor: Estão todos sobrecarregados?
Camille: Nesse estilo de vida frenético e agitado,
em que os bens materiais foram adquiridos pelo alto preço da constante
tensão nervosa. Feministas culpam os homens pela infelicidade das
mulheres que têm uma carreira profissional, mas a verdadeira causa é
muito mais ampla e mais sistêmica. Que os homens ajudem com as tarefas
domésticas pode ser admirável, mas não é a solução perfeita, porque o
homem obediente que humildemente lava a roupa pode não mais excitar a
sua mulher na cama.
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Reportagem Por Lígia Nogueira
Fonte: VE online, 15/08/2014
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