sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A alta cultura virou marginal

 Getty Images
 Camille: "Há boa arte sendo produzida no mundo inteiro atualmente, mas ela é tristemente derivativa, repete temas ou técnicas que foram criadas há muito tempo"

Camille Paglia, uma das intelectuais públicas mais explosivas dos Estados Unidos nos anos 1990, continua a fazer jus ao adjetivo controversa, frequentemente associado a ela. "As mulheres precisam parar de querer que os homens se comportem como mulheres", diz Camille em entrevista ao Valor, uma clara alfinetada às feministas. Eleita uma das pensadoras mais importantes do século XX, segundo pesquisa das revistas "The Prospect" e "Foreign Policy", Camille ganhou notoriedade quando lançou seu primeiro livro e, mais tarde, cofundou e se tornou colunista do portal americano Salon.com. Protagonizou acalorados debates a respeito de comportamento, feminismo, religião, sexo, literatura, artes plásticas, cinema, música, economia e política - tema que ultimamente perdeu centralidade em suas conversas.

Professora de humanidades e estudos midiáticos da Universidade de Artes na Filadélfia lança neste mês no Brasil o livro "Imagens Cintilantes - Uma Viagem através da Arte desde o Egito a Star Wars" (editora Apicuri, 224 págs., R$ 49,00). A ideia, segundo a autora, é que a obra funcione como uma espécie de "livro de orações", acessível a qualquer pessoa que queira entender a importância da história da arte no Ocidente ao longo dos últimos dois mil anos. "Livros de arte grandes e pesados são pretensiosos, elitistas e desencorajam a leitura", diz.

A publicação traça uma linha do tempo por meio de figuras inspiradoras - pinturas, esculturas, estilos arquitetônicos, performances e cinema - entremeadas por uma análise que situa cada artista e obra em um contexto histórico e social. O filme "Star Wars: Episódio III - A Vingança dos Sith" (2005) encerra o livro. "Ninguém reduziu a distância que separava a arte da tecnologia com maior êxito do que George Lucas", escreve. "Há boa arte sendo produzida no mundo inteiro atualmente, mas ela é tristemente derivativa, repete temas ou técnicas que foram criadas há muito tempo. O trabalho de nenhum outro artista hoje tem sequer uma fração do imenso impacto que Lucas teve na imaginação do público em âmbito global."

"O grafite no Brasil está enraizado na desigualdade econômica e racial: um grafite representa a voz hostil 
e vingadora dos oprimidos"

Aos 67 anos, Camille faz parte da geração de "baby boomers" americana, que viveu intensamente a era "flower power". Sua estreia em livro foi com "Personas Sexuais" (1990), ensaio de 700 páginas sobre a representação artística e literária em termos de sexualidade, que se tornou um best-seller e foi seguido de outras cinco obras, incluindo "Sexo, Arte e Cultura Americana" (1992) e a coletânea de artigos "Vampes e Vadias" (1994). Os anos de pesquisa conferem a ela cada dia mais autoridade para relacionar sexo e cultura pop. Não à toa Camille assina o texto "Theater of Gender: David Bowie at the Climax of the Sexual Revolution" (Teatro do gênero: David Bowie no clímax da revolução sexual), encomendado pelo Victoria & Albert Museum em 2011 para o catálogo de "David Bowie Is", a maior exposição já realizada sobre o artista inglês.

Em seu próximo projeto, mudará o foco: pesquisa os índios nativos americanos de dez mil anos atrás. Para tanto, tem coletado pequenos artefatos de pedra em florestas e riachos em sua vizinhança perto da Filadélfia. "O foco do estudo será o sublime e cósmico culto à natureza feito pelos índios, que é também a minha filosofia particular", conta.

Nesta entrevista, Camille fala sobre arte, relacionamento entre homem e mulher, sua paixão pelo Brasil e a amizade com a cantora baiana Daniela Mercury. "Tenho lido artigos simples em português, mas ainda não consigo conversar", diz. "Há uma sincopação jazzística nas frases, até mesmo quando escritas."

Valor: Do Egito a "Star Wars", qual foi o critério para escolher as obras retratadas em "Imagens Cintilantes"? É verdade que incluir o filme de George Lucas no livro não fazia parte dos planos originalmente?
Camille Paglia: Meu objetivo era mostrar o quão estimulante é a história da arte ao longo dos últimos dois mil anos - para fazer que as pessoas sentissem o poder e o ímpeto da arte, assim como a sua incrível progressão na tradição ocidental. Escolhi um exemplo vívido de cada estilo principal e mantive cada capítulo curto para atingir um público maior. Livros de arte grandes e pesados são pretensiosos, elitistas e desencorajam a sua exploração. Um livro de arte deve ser acessível, proporcionar prazer no manuseio. Apesar de o meu livro ser bem curto, levei cinco anos escrevendo. Para o capítulo final, eu procurava um exemplo forte de arte contemporânea, mas não encontrei nada satisfatório. Há boa arte sendo produzida no mundo inteiro, mas ela é tristemente derivativa - repete temas ou técnicas que foram criadas há muito tempo pelos grandes modernistas. Pouco a pouco, fui me convencendo de que o diretor George Lucas, autor de "Star Wars" e pioneiro da animação digital, é, na verdade, o artista vivo mais influente, conhecido por milhões no mundo todo. O trabalho de nenhum outro artista hoje tem sequer uma fração do imenso impacto que Lucas teve na imaginação do público em âmbito global.
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"Star Wars: Episódio III": "O trabalho de nenhum outro artista hoje tem sequer uma fração do imenso impacto que [George] 
Lucas teve na imaginação do público em âmbito global", diz Camille
 
Valor: Um dos objetivos do seu livro é que ele funcione como uma introdução à arte para os leitores americanos, principalmente as crianças. Que impacto acha que ele vai ter no Brasil?
Camille: O ensino de humanidades e das artes está ficando cada vez pior em todo lugar, não só nos Estados Unidos. A cultura dos jovens hoje é apenas a mídia de massa - televisão, videogame, iPod, Instagram. No começo da carreira, eu me distanciei dos professores mais velhos por celebrar a mídia de massa, que não era considerada "séria". Mas nunca quis que a alta cultura fosse diminuída ou marginalizada, algo que vem acontecendo com regularidade por várias décadas. Os pais precisam acordar para o ambiente visual caótico em que seus filhos vivem. Eles passam dias numa realidade virtual vertiginosa, repleta de trivialidades transitórias e anúncios invasivos. As obras de arte reunidas em meu livro foram feitas para focar e disciplinar o olhar, induzir um senso de quietude e contemplação. Os pais devem ser responsabilizados pela introdução de seus filhos à arte e meu livro é um guia simples e acessível para isso. Eu o imagino como um breviário, como nas missas católicas, na minha religião da arte.

Valor: A arte pop matou a pintura?
Camille: O que matou a pintura foram as excitantes novas formas multimídia - como instalações de arte, arte em vídeo e arte performática. Um exemplo excelente foi "Tropicália", obra radical de Helio Oiticica exibida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1967. Os artistas hoje têm muito meios para trabalhar. O prestígio e a importância da pintura, a rainha das belas-artes, está decaindo há meio século e infelizmente também está desaparecendo a habilidade simples de desenhar. O que a arte pop matou de verdade foi a vanguarda. Praticamente não sobrou mais nada que seja vanguarda hoje. A arte experimental se tornou uma brincadeira infantil e ridícula. Meu herói, Andy Warhol, que começou como um ilustrador comercial fazendo anúncios de sapatos femininos, acabou para sempre com o caráter de oposição que tantos grandes artistas cultivaram heroicamente contra a sociedade burguesa depois da rebelião contra a revolução industrial do fim do século XVIII. A glorificação dos ícones capitalistas - latas de sopa Campbell's ou estrelas de Hollywood como Marilyn Monroe - foi vista inicialmente por outros artistas como uma traição ultrajante dos valores deixados pela arte de vanguarda. A "diversão" presente na arte pop - como nas tiras cômicas ampliadas de Roy Lichtenstein - era considerada um insulto aos terríveis sacrifícios feitos pelos pintores de vanguarda, que tiveram de enfrentar pobreza, rejeição e até suicídio, como os expressionistas abstratos da geração anterior.

Valor: No Brasil há um forte debate, principalmente em São Paulo, acerca do grafite e da pichação. Qual é a sua opinião a respeito desse tipo de arte urbana?
Camille: Houve uma grande controvérsia nos Estados Unidos envolvendo o grafite nos anos 60 e 70. Alguns o viam como uma forma de arte popular, enquanto outros o enxergavam como vandalismo e degradação do espaço público. Não há dúvida de que o melhor grafite criou um novo estilo caligráfico, fluente e dinâmico, que influenciou o design gráfico, assim como as belas-artes. No entanto, grafite em quantidade excessiva ou como desfiguração brutal de trens, ônibus e arquitetura é claramente o sintoma de uma instabilidade social mais profunda. O grafiteiro está violando de maneira agressiva o espaço público e, com efeito, urinando nele e nas autoridades governamentais como um gesto niilista de desprezo. O grafite moderno teve origem na Filadélfia e em Nova York, mas era controlado por esforços sistemáticos dos governos de cada cidade. Em 1984, um programa de artes em mural surgiu da Philadelphia Anti-Graffiti Network, e os resultados foram surpreendentes. Hoje há inúmeros murais, gigantes e coloridos, que representam a história e a cultura afro-americana e latina do lado de fora de prédios por toda a Filadélfia, onde o grafite hoje ficou mais raro. O problema do grafite no Brasil está enraizado na enorme desigualdade econômica e racial; um grafite representa a voz hostil e vingadora dos oprimidos. A Itália também, com a piora da economia, está infestada pelo grafite. Em março, quando viajei àquele país para o lançamento do meu livro, fiquei horrorizada com os quilômetros de lojas e prédios desfigurados - a maioria deles feita nos últimos sete anos. Fui informada de que a situação é ainda pior em outros lugares, como na histórica universidade da cidade de Bolonha, onde muitos jovens não respeitam sua herança cultural. Espero que a ascensão internacional do grafite ilegal não seja um sintoma do colapso cultural, em que gangues de rua amorais tomam o controle da sociedade, como na obscura visão de futuro apresentada por Anthony Burgess em "Laranja Mecânica".

"No Brasil, todo mundo tem exatamente o mesmo nível de energia que eu. E até mais!", diz Camille Paglia, 
que já veio sete vezes ao país

Valor: A senhora já esteve no Brasil sete vezes e também estuda português. Como é a sua relação com o país?
Camille: Fui ao país sete vezes desde 1996 e adoro! No momento em que desço do avião, fico muito feliz em estar entre brasileiros, com quem me sinto completamente em casa. Nos outros lugares aonde vou, preciso tomar cuidado para não exagerar com a minha energia. Mas, no Brasil, todo mundo tem exatamente o mesmo nível de energia que eu - e até mais! E, sim, sou fascinada pelo português brasileiro, que eu considero livre e aberto - comparado à formalidade e até à frieza do português de Portugal. Há uma sincopação jazzística nas frases em português, até mesmo quando escritas. Ano a ano, vou lentamente expandindo meu vocabulário, escutando letras de música e lendo artigos simples em revistas, jornais e sites brasileiros. No entanto, ainda tenho problema com a conversação, que é rápida demais para mim.

Valor: A senhora pesquisa música brasileira? Poderia falar mais sobre a sua amizade com a cantora baiana Daniela Mercury?
Camille: Estou constantemente estudando a magnífica história da música brasileira, sobre a qual costumo falar com meus alunos. Fiquei particularmente atraída pelo estilo sincretista de Carlinhos Brown no seu auge criativo. Depois de fazer uma palestra em Salvador, em 2008, escrevi um artigo longo sobre Daniela Mercury para o Salon.com. Ela generosamente me convidou para o Carnaval seguinte, quando a encontrei pela primeira vez e participei de seu trio elétrico. Nos tornamos amigas e nada mais. Continuo a admirar profundamente as realizações de Daniela durante duas décadas de música, mas devo admitir que estou surpresa e preocupada com suas escolhas artísticas recentes. Mantenho uma amizade muito próxima com o ex-marido dela, Marco Scabia, um homem da mais alta espiritualidade e elegância.
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"Vênus com Espelho", de Ticiano: objetivo do novo livro é fazer que as pessoas sintam "o poder e o ímpeto da arte, 
assim como a sua incrível progressão na tradição ocidental"
 
Valor: Que análise a senhora faz da música pop americana? Por que considera Rihanna uma artista "verdadeira"?
Camille: O mercado de música americano está dominado por uma forma muito comercial de hip-hop no momento. O rap prosperou por 35 anos, mas se tornou um clichê, ficou muito previsível. No entanto, achei o disco mais recente de Eminem, "The Marshall Mathers LP 2", muito forte em termos de poética e escrevi uma matéria de capa sobre o álbum para a revista "Sunday Times" de Londres. Também gosto muito do Black Keys. Com a sua complexa técnica de "overdubbing" [sobreposição de camadas de sons], Dan Auerbach se transforma em um mago da guitarra, e considero sua autoexposição emocional muito tocante. Beyoncé é uma cantora e dançarina incrível, mas não tem nada a dizer. Suas performances são extremamente calculadas e artificiais. Rihanna, por outro lado, é hipersensível e introspectiva, tem uma combinação misteriosa de personalidade assertiva e extravagante com uma tímida vulnerabilidade e melancolia. Adoro o senso fashion de Rihanna e o seu dom para a comunicação silenciosa com as lentes dos paparazzi. Acompanho a vida social dela - e suas intermináveis festas em praias e clubes, seus flertes com homens e mulheres - no "Daily Mail" on-line de Londres. A música britânica é muito mais vibrante agora do que a americana. Há cantoras ótimas e apaixonadas, como Adele, e bandas de rock vigorosas como Arctic Monkeys.

Valor: A senhora disse que muitas mulheres não se dão conta do quão vulneráveis ficam ao usar roupas sexy em público. Acha que a mulher precisa se preocupar com o que veste?
Camille: Chamo minha filosofia de "street-smart feminism". Acho que as mulheres têm o direito absoluto de usar o que quiserem em público - até mesmo nada -, mas também precisam ser totalmente realistas quanto aos perigos do mundo, que nunca serão totalmente erradicados. As mulheres precisam ficar alertas às reações extremas que a beleza ou a nudez podem causar e devem ter controle sobre a própria segurança e estar preparadas para se defender. Infelizmente, muitas mulheres, incluindo algumas feministas, são assustadoramente ingênuas quanto à natureza humana. Para cada 99 homens racionais e confiáveis, que têm uma conduta ética, há um pervertido, criminoso psicótico, que é conduzido por seus instintos animais primitivos de dominar e destruir. O clássico filme "Psicose" [1960], de Alfred Hitchcock, foi baseado em um caso real de assassino sanguinário. As mulheres precisam parar de esperar por figuras paternalistas que as protejam. Que jeito mais reacionário de pensar! As feministas modernas devem ser independentes e autoconfiantes. É uma fantasia burguesa pensar que o mundo pode ser completamente seguro, especialmente nas ruas. Os homens gays sempre entenderam os perigos da rua - e até os consideram eroticamente excitantes. Se as mulheres querem direitos iguais, também precisam aceitar que precisam ser responsáveis à altura.

"O homem obediente que humildemente lava a roupa pode não mais excitar a sua mulher na cama", afirma a autora de "Personas Sexuais"

Valor: A senhora costuma dizer que não há mais espaço para o desenvolvimento de características masculinas nos homens desde o ensino fundamental e, por outro lado, as mulheres estão se tornando desinteressantes e até infelizes, mesmo que invistam em cuidados estéticos e sejam bem-sucedidas no trabalho. Nesse cenário, como homens e mulheres contemporâneos podem se relacionar?
Camille: Parece estar havendo uma diminuição no nível de satisfação entre os sexos na sociedade ocidental. Os homens de classe média, que trabalham em computadores nos escritórios, estão fazendo o mesmo que as mulheres e acabaram perdendo qualquer identidade ou habilidade especial masculina. Além disso, os homens estão sob uma forte pressão de suas mulheres ou namoradas para se "comunicar" constantemente - um método feminino de falar muito que só os homens gays entendem e no qual são especialistas. As mulheres precisam parar de querer que os homens se comportem como mulheres. O maior problema com as relações contemporâneas não é uma questão de gênero, mas a transição histórica de família grande que reúne várias gerações diferentes para uma família nuclear com um pai e uma mãe. A família grande era um time, em que cuidar da casa, das crianças e das pessoas mais idosas era uma tarefa dividida entre todos em uma atmosfera de comunidade. Mas, hoje, o pai e a mãe se embaralham, tentando desesperadamente realizar as tarefas domésticas enquanto sua vida profissional está em outro lugar, em um escritório distante.

Valor: Estão todos sobrecarregados?
Camille: Nesse estilo de vida frenético e agitado, em que os bens materiais foram adquiridos pelo alto preço da constante tensão nervosa. Feministas culpam os homens pela infelicidade das mulheres que têm uma carreira profissional, mas a verdadeira causa é muito mais ampla e mais sistêmica. Que os homens ajudem com as tarefas domésticas pode ser admirável, mas não é a solução perfeita, porque o homem obediente que humildemente lava a roupa pode não mais excitar a sua mulher na cama.
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Reportagem  Por Lígia Nogueira
Fonte: VE online, 15/08/2014

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