sábado, 2 de agosto de 2014

“O oposto da depressão não é felicidade, mas vitalidade”

COM LIVROS PREMIADOS e traduzidos para mais de 20 idiomas, o escritor americano Andrew Solomon, 50 anos, colabora com diferentes jornais e cruza o mundo falando em conferências na última sexta-feira, no Brasil, participou de um debate durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Quem observa a movimentada agenda do escritor mal consegue imaginar que Solomon já sofreu crises de depressão tão profundas que o deixaram à beira do imobilismo. O livro O Demônio do Meio-Dia (2001), em que analisa a depressão a partir da própria experiência com a doença, foi escolhido um dos cem melhores da década pelo jornal britânico The Times. Na infância, Solomon contou com o apoio dos pais para superar sua dislexia. Mais tarde, teve dificuldade para ser aceito por eles quando revelou sua homossexualidade. Essas situações inspiraram o livro Longe da Árvore (2012), resultado de mais de 10 anos de pesquisa sobre crianças, adolescentes e adultos à margem dos padrões sociais e biológicos considerados “normais”, aceitos (ou não) por suas famílias. Nesta entrevista, o autor fala sobre depressão, autoaceitação e os avanços dos movimentos pelos direitos dos homossexuais.

Em O Demônio do Meio-Dia, o senhor narra um colapso causado pela depressão, que durante algum tempo o impediu de realizar atividades básicas como tomar banho, por exemplo. De que modo conseguiu superar esse quadro?

Minha depressão respondeu a um tratamento que combinou medicação e psicoterapia. Imagino que precisarei manter essa combinação pelo resto da minha vida. Às vezes, isso não parece um problema; em outras, sinto como algo muito inconveniente e irritante.

O que recomendaria para quem está passando pela mesma situação?

Realmente acredito que as pessoas devem procurar o que funciona para elas. Já encontrei gente que teve boas respostas com recursos que soam ridículos sob o ponto de vista científico, mas que efetivamente fizeram com que elas se sentissem melhor. Então, não se pode dizer que é algo ridículo, uma vez que ajudou alguém. O único perigo disso é que, enquanto alguém se dedica a um tratamento sem eficácia comprovada, está atrasando o início de algo que já tem um histórico de comprovação e, neste intervalo de tempo, o quadro pode se agravar. Meu tratamento é baseado nas tecnologias modernas – e sou muito grato por viver em um tempo em que tudo isso está disponível.

Hoje se fala muito mais de depressão do que se falava antigamente. Isso se deve a um maior conhecimento sobre o tema ou ao fato de que houve uma banalização do termo?

Acho que sabemos muito mais sobre depressão e, por isto, podemos fazer mais por quem está sofrendo da doença. Há cem anos, quem se sentia depressivo não falava muito sobre isso, até porque não havia muito a fazer a respeito. Agora, há muitas intervenções possíveis: remédios, psicoterapia, eletrochoques para quem necessita... O fato de as pessoas estarem falando mais e terem a mente mais aberta sobre o assunto é sempre algo bom.

Pode estar havendo alguma dificuldade de lidar com dores que fazem parte da vida e que acabam sendo confundidas com depressão?

Acredito que é uma pobreza de nossas línguas usar a palavra “depressão” para descrever sentimentos de tristeza e também uma condição clínica. A experiência que uma criança tem quando seu jogo de futebol é cancelado, por exemplo, é bem diferente da experiência de alguém que comete suicídio. O fato de usarmos a mesma palavra para ambas as situações gera confusão. Pessoas que já tiveram a experiência de ter um dia muito ruim às vezes acreditam saber o que é uma depressão. Ressalto que o oposto de depressão não é felicidade, mas vitalidade. Depressão não é tristeza, é a falta de energia para fazer qualquer coisa com a sua vida. Não há como comprovar isso, mas suspeito que exista uma taxa maior de depressão atualmente do que se costumava ter. E há muitas razões para isso: estamos interagindo mais com computadores do que com pessoas, o ritmo de vida é rápido demais, nós temos várias possibilidades de comunicação, mas não usamos porque ficamos vendo TV... Há mais fatores estressantes na vida moderna que podem ajudar a desencadear depressões.

Muitos consideram a depressão um fenômeno moderno ocidental.

Esse é um mito que tenho interesse em destruir. Comecei pesquisando conceitos históricos de depressão. Hipócrates, há 2,5 mil anos, descrevia a depressão nos mesmos termos com que a descrevemos hoje. Além disso, dizia que era uma disfunção orgânica do cérebro, melhor disparada por fatores externos. Já Platão afirmava que era um problema filosófico, melhor resolvido por meio de conversas. Então, a distinção entre os modelos médicos e psicodinâmicos da depressão já existe há cerca de 25 séculos. Com intuito de observar melhor se era um fenômeno ocidental, me aventurei a estar em uma grande variedade de sociedades. Observei a depressão entre os sobreviventes do Khmer Vermelho do Camboja, entre esquimós inuítes, e fui até o Senegal, onde participei de sessões do tratamento ritual da doença, bastante populares lá. Constatei que a linguagem usada para descrever a depressão varia um pouco, mas a ideia de que algumas pessoas às vezes se sentiam inexplicavelmente divorciadas de todas as oportunidades e de tudo o que dava sentido para suas vidas existia em qualquer sociedade que pude encontrar.

Ainda há quem afirme que é um problema de classe média.

Também busquei observar essa ideia de que a depressão só ocorre quando você é desocupado o suficiente para ter tempo para ela, por isso, seria de algum modo uma experiência das classes mais abastadas. No entanto, descobri que quando você tem uma vida que, em termos materiais, poderia ser maravilhosa, mas se sente triste o tempo todo, você procura um médico, já que isso não faz sentido. Mas, se você é pobre e sua vida é difícil, quando se sente triste pensa: “É claro que me sinto triste, minha vida é horrível”. E então não busca tratamento. Na realidade, quando você entrevista muitas pessoas que estão vivendo depressão, percebe que frequentemente elas não estão deprimidas porque têm vidas horríveis e pobres, e sim têm vidas horríveis e pobres porque a depressão as paralisa e não permite que façam o que deveriam para melhorar.

No livro Longe da Árvore, publicado ano passado no Brasil, o senhor aborda o crescimento de filhos com identidades diversas das de seus pais e a forma como são aceitos ou não. Transgêneros, autistas, surdos e esquizofrênicos são alguns exemplos. Hoje, os pais estão mais bem preparados para lidar com filhos que não correspondem às suas expectativas?

Acho que jamais alguém está preparado para ter filhos muito diferentes de si. É chocante para todas as famílias em que isso ocorre. Não acredito que as pessoas estejam mais bem preparadas, e sim que, na era da internet, há mais possibilidades de encontrar comunidades com pessoas que também precisam lidar com as mesmas situações. Além de adquirirem conhecimento nesses espaços, compreendem a ideia de que a vida com uma criança que é diferente, algo que parece incrivelmente difícil, é sim possível, já que há muitos outros pais conseguindo lidar com esta situação. Tudo isso colabora para que os pais aceitem com mais facilidade crianças diferentes da expectativa da maior parte das pessoas. No entanto, “mais fácil” não quer dizer “fácil”. É apenas um pouco menos difícil.

Onde o senhor acha que as pessoas enfrentam mais preconceito, dentro ou fora de casa?

Acredito que há três níveis de aceitação a serem desenvolvidos: autoaceitação, aceitação familiar e aceitação social – esta última inclui escola e trabalho. Cada um deles influencia os outros. É claro que já ouvi histórias de gente bem compreendida em casa, mas que sofre preconceito imenso no trabalho, e também o contrário. Mas não diria que um dos níveis é mais importante do que os outros. O que acredito é que alguém com autoaceitação tem uma influência, ainda que limitada, em ser aceito por sua família e pelo mundo. Quem é aceito pela família tende a ser mais bem aceito no trabalho, porque sua atitude é diferente, e assim por diante. Do mesmo modo, pessoas que cresceram sendo rejeitadas pela família tendem a sofrer mais rejeições no trabalho, porque isso passa a ser uma constante para elas, a ponto de não saberem muito bem como construir suas vidas sem esse sentimento.

Como estimular a autoaceitação de uma criança e não fazê-la se sentir sozinha em suas diferenças?

Não penso em termos de uma criança se sentir sozinha, mas em um importante equilíbrio que muitas vezes é delicado. Uma criança com diferenças deve ser inserida no mundo real, educada em salas de aulas e exposta a pessoas e colegas que não compartilham suas mesmas diferenças, já que esse é o mundo em que viverá. Mas essa criança também deveria ocupar algum tempo em salas de aula e outros contextos junto a pessoas com sua mesma condição, onde poderá entender melhor o que é esta experiência, ter ideia dos desafios que terá de enfrentar. Acredito que os dois ambientes são necessários.

A homossexualidade era considerada uma doença há algumas décadas. Hoje, a união homoafetiva é uma realidade. Como militante dos direitos dos homossexuais, como explica esses progressos?

Isso pode parecer repentino, mas é o resultado de muitas décadas de ativismo e pode ser atribuído consideravelmente aos movimentos por direitos civis anteriores, como o movimento pelo direito das mulheres ao voto e os movimentos pelos direitos das minorias raciais. Acredito que o movimento gay se inspirou nesses dois, e todos têm em mente uma sensibilidade pós-colonial: um grupo de pessoas não deveria ser autorizado a controlar outro grupo de pessoas. Também acho importante dizer que o casamento gay é maravilhoso, tenho um casamento gay e estou muito contente por isto. Mas é preciso avançar em outras questões. Nos EUA e em outros países, em diferentes proporções, pessoas continuam sendo demitidas por serem gays, ou sendo maltratadas por serem gays, ou tendo o direito de habitação negado por serem gays... Há até mesmo países em que pessoas são executadas por serem gays. São todas formas de preconceito.

Os setores políticos que se posicionaram contra a união homoafetiva, tanto no Brasil quanto nos EUA, têm forte ligação com as religiões cristãs. Por outro lado, o cristianismo promove a ideia de amor e tolerância. Como o senhor vê o papel das religiões no combate aos preconceitos?

Acredito que se relacionar com as religiões é realmente importante, pois os direitos pelos quais batalhamos não virão até que elas deixem de se opor. Minha experiência trabalhando nesse mundo é que os maiores atos de generosidade, compreensão e gentileza para os gays devem muito à influência das instituições religiosas. E os grandes atos de preconceito, crueldade e depressão vieram, da mesma forma, de instituições religiosas ou foram feitos em nome da religião. Pertenço a uma igreja de Nova York bastante aberta e respeitosa, e o que admiro do cristianismo vem de seu primeiro mandamento (amar o seu inimigo) e da crença no juízo de Deus – e não presunção de que podemos julgar uns aos outros. As passagens que são usadas o tempo todo para atacar os gays são relativamente insignificantes na Bíblia, que é repleta de muitas outras instruções. A base lógica dos religiosos antigays é muito débil, e o modo como eles a mantêm é profundamente não cristão. Acredito que foi em um contexto como esse que Gandhi disse “Amo seu Cristo, mas não seus cristãos, porque são tão diferentes d’Ele”. Acredito que a homofobia nas religiões organizadas é um dos grandes venenos da vida moderna.

E como vê a atuação do papa Francisco em relação aos gays?

O novo papa tem uma enorme humildade e consegue se engajar com as pessoas. Sobre os gays, em particular, ele disse em entrevista algo como “Se uma pessoa é gay e busca Deus, quem sou eu para julgá-la?”, o que é bastante diferente das frases dos dois papas anteriores sobre o tema. Fico animado, pois isso demonstra que ele é mais aberto e tolerante à causa. Acredito que não exista apenas um modo de ser uma boa pessoa e um bom cristão.

No Brasil, já há alguns anos, tenta-se aprovar uma lei contra a homofobia. O que acha de uma lei como essa?

Acho que há áreas em que as leis são relevantes: por exemplo, uma lei que impeça que se demitam pessoas por serem gays ou uma lei que afirme ser crime de ódio bater em alguém por ser homossexual. O que não faria sentido é uma lei que obrigasse pessoas que não gostam de gays a passarem a gostar. Isso não se transforma com uma lei, mas com educação. Mas, quando você tem um mecanismo legal que indica que gays precisam ser tratados com igual dignidade, esse é um modo muito forte de comunicar que gays são iguais a qualquer outro ser humano, e isto afeta o modo como a população encara esse grupo. É um círculo: melhores leis ajudam a criar melhores atitudes, e com melhores atitudes é mais fácil criar melhores leis.
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Reportagem por  ALEXANDRE LUCCHESE
Fonte: ZH online, 02/08/2014

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