Luis Fernando Veríssimo*
Na recente comemoração do centenário de nascimento do
Julio Cortázar, escreveu-se muito sobre metalinguagem, que ele usou em
alguns dos seus textos mais conhecidos, como O Jogo da Amarelinha, que
eram para ser lidos como jogos de armar. Cortázar seria um pioneiro do
pós-modernismo, definido como uma literatura autoconsciente ao extremo,
uma literatura com os andaimes à mostra, que convida o leitor a ser
cúmplice dos seus artifícios. Italo Calvino descreveu o pós-modernismo
como “a tendência de usar, ironicamente, imagens padronizadas da cultura
de massa, ou injetar o fascínio herdado da tradição literária numa
narrativa que acentua o seu artificialismo”. Segundo essa definição, o
pós-moderno é a continuação do moderno como paródia, jogo ou
desmistificação.
Mas você pode, com alguma boa vontade, identificar o início do pós-moderno no pré-moderno, ou no próprio nascimento da tradição literária de que fala Calvino: o Dom Quixote, de Cervantes, que já era na sua origem, no começo do século 17, uma literatura autoconsciente e parodística. A segunda parte de Dom Quixote acontece num mundo em que já aconteceu a primeira parte, e o Quixote e suas aventuras malucas são conhecidas. Cervantes incorpora sua fantasia e seu personagem fictício à realidade do dia, confiando na indulgência do leitor com o truque – e pode dizer, antes de todos os pós-modernistas que virão: “Primeirão!”.
O livro mais revolucionário da história da Literatura, o Jogo da Amarelinha do seu tempo, se chama A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, do irlandês Laurence Sterne. Foi publicado em nove volumes – começando em 1760! É a história, contada na primeira pessoa, de um personagem rocambolesco, Tristram, que recorre a todas as convenções literárias da época, fazendo pouco delas, para narrar sua vida, e quando as convenções e as palavras não bastam, recorre a grafismos (como o desenho no meio do texto de uma linha em espiral para descrever o movimento de uma bengala no ar) que devem ter sido um desafio para os tipógrafos de então. Sterne foi outro pós-moderno antes do moderno.
O americano John Barth, este um pós-moderno de hoje, escreveu sobre dois pós-modernos contemporâneos que admira, Calvino e Jorge Luis Borges, e tomou emprestada de Borges uma definição de dois valores que, combinados, descrevem a arte da dupla, Álgebra e Fogo. Álgebra significando a engenhosidade formal de uma obra, o truque que surpreende ou desafia o leitor, e fogo o que o comove. Álgebra sem fogo acaba em malabarismo técnico sem alma, fogo sem álgebra acaba em literatura enjoativa, porque alma demais também enjoa. Para Barth, Calvino e Borges são os dois grandes escritores do nosso tempo porque, na sua ficção, atingiram como ninguém mais a fusão de álgebra e fogo. Barth descreve o que eles fazem – ou fizeram, pois já se foram – como “virtuosismo passional”. Perfeito.
Mas você pode, com alguma boa vontade, identificar o início do pós-moderno no pré-moderno, ou no próprio nascimento da tradição literária de que fala Calvino: o Dom Quixote, de Cervantes, que já era na sua origem, no começo do século 17, uma literatura autoconsciente e parodística. A segunda parte de Dom Quixote acontece num mundo em que já aconteceu a primeira parte, e o Quixote e suas aventuras malucas são conhecidas. Cervantes incorpora sua fantasia e seu personagem fictício à realidade do dia, confiando na indulgência do leitor com o truque – e pode dizer, antes de todos os pós-modernistas que virão: “Primeirão!”.
O livro mais revolucionário da história da Literatura, o Jogo da Amarelinha do seu tempo, se chama A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, do irlandês Laurence Sterne. Foi publicado em nove volumes – começando em 1760! É a história, contada na primeira pessoa, de um personagem rocambolesco, Tristram, que recorre a todas as convenções literárias da época, fazendo pouco delas, para narrar sua vida, e quando as convenções e as palavras não bastam, recorre a grafismos (como o desenho no meio do texto de uma linha em espiral para descrever o movimento de uma bengala no ar) que devem ter sido um desafio para os tipógrafos de então. Sterne foi outro pós-moderno antes do moderno.
O americano John Barth, este um pós-moderno de hoje, escreveu sobre dois pós-modernos contemporâneos que admira, Calvino e Jorge Luis Borges, e tomou emprestada de Borges uma definição de dois valores que, combinados, descrevem a arte da dupla, Álgebra e Fogo. Álgebra significando a engenhosidade formal de uma obra, o truque que surpreende ou desafia o leitor, e fogo o que o comove. Álgebra sem fogo acaba em malabarismo técnico sem alma, fogo sem álgebra acaba em literatura enjoativa, porque alma demais também enjoa. Para Barth, Calvino e Borges são os dois grandes escritores do nosso tempo porque, na sua ficção, atingiram como ninguém mais a fusão de álgebra e fogo. Barth descreve o que eles fazem – ou fizeram, pois já se foram – como “virtuosismo passional”. Perfeito.
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: ZH online, 30/08/2014
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