Renato Janine Ribeiro*
"Para doar, fazer o bem, precisamos mesmo do incentivo de uma
ducha viral? Sem o prazer de ver famosos
pagando mico não doaríamos?"
É justo, é correto, é bom fazer o bem por razões que não são as do
bem? É certo agir corretamente, mas por razões tortas? Essa pergunta não
é nova, mas é a que me ocorre quando vejo o desafio do balde de gelo.
Resumindo, quando você é desafiado ou dá US$ 100 para uma determinada
causa nobre ou vira um balde de água com gelo na cabeça, e aí entrega
apenas US$ 10. E depois desafia mais três pessoas. É claro que o charme
está em sair nas redes sociais gritando, enquanto cai a água geladíssima
na sua cabeça. Não é à toa que famosos têm feito isso. E não é
fortuito que Paulo Maluf, que para muitos não
representa exatamente o bem, tenha feito uma versão própria do desafio,
nadando numa piscina fria em vez de derramar o gelo na cabeça.
Sem dúvida, há algo estranho nessa moda. Por que o divertido estará
em pagar menos? Na verdade, o melhor, para os beneficiários, seria
receberem os US$ 100, não os US$ 10 que lhes cabem quando alguma
celebridade ou sub sai na foto. Mas é o susto mostrado na foto ou no
clipe que multiplica o desafio. Em outras palavras, chegam menos US$ 90,
mas o valor de uma propaganda com um famoso é inestimável. Perde-se na
boca do caixa, de imediato, mas em algumas horas a imagem vira viral e
assim se arrecada muito mais. O negócio é o espetáculo. A propaganda é a
alma da doação.
Daí minha pergunta: para doar, para fazer o bem, precisamos mesmo
desse incentivo? Sem o prazer de ver famosos pagando mico não doaríamos?
Ora, o que parece fazer mais sentido eticamente é: a satisfação de
fazer o bem é o próprio bem. Deveria ser uma satisfação pura,
independente dos resultados que proporcione. Isso é, bem sumariamente, Kant.
Uma decisão ética não pode levar em conta os efeitos que ela terá –
significando as vantagens ou desvantagens que trará, para todos, mas
particularmente para mim.
Dessa maneira se recortam, para usar uma linguagem mais recente, a
esfera da ética e a da prudência. Ajo com prudência quando busco
resultados positivos. Procuro a vantagem pessoal. Ou, na melhor das
hipóteses, diante de uma injustiça percebo que reagir acarretará
problemas sérios para mim, ou mesmo para o injustiçado, e procuro uma
via indireta para reduzir danos. Já a ação ética não deve levar em conta
o que ela há de produzir. Uma injustiça é uma injustiça, ponto, e deve
ser confrontada.
Deixemos claro: a maior parte das pessoas, a maior parte das vezes,
age (ou pensa agir) com prudência. Mas quem faz a diferença é a pequena
minoria de pessoas – e ações – que responde a um clamor ético. Nosso
mundo seria um horror não fossem os heróis que, de tempos em tempos,
afrontam as potestades, deixam de lado a prudência (“ho perduto la
prudenza”, diz uma personagem do Don Giovanni, de Mozart) e partem para a luta.
Muitas vezes sucumbem, mas, se a vida humana tem algum valor além do
biológico, é graças a eles. O que seria a humanidade, não fossem esses
faróis que abrem caminhos antes insuspeitos? Sem eles, teríamos escravidão, mutilação genital,
subordinação das mulheres aos homens, dos pobres aos ricos, dos plebeus
aos nobres, tudo isso que – pelo menos nos últimos 200 anos – vem sendo
questionado e, ao ser vencido, melhora nosso mundo.
Ou seja, eu dar dinheiro porque um espetáculo semicircense me motivou
não é ético. É uma diversão. Traz efeitos positivos, sim, porque o
dinheiro vai para uma entidade (nem discuto aqui a entidade ou a causa,
porque estou tratando do assunto em tese). Mas justamente o fato de me
divertir e de serem bons os resultados caracteriza essa ação como não
sendo ética. Não quer dizer que seja imoral ou antiética, tampouco.
Apenas está fora do âmbito da ética. Possivelmente, traz ganhos para a
causa. Será então vantajosa. Mas aumentará o que chamarei, com alguma
impropriedade, de “teor ético” na sociedade? Penso que não.
Uma das queixas mais frequentes em nossos dias é uma certa
depreciação da ética. Muitos dizem que os tempos passados eram mais
éticos. Num certo sentido, é verdade, só que o significado de ética,
para nossos avós, era diferente do atual. Tomemos por exemplo a ética na
política. Fala-se bastante dos impolutos políticos da República Velha.
Conta-se daqueles que jamais tomavam um centavo do dinheiro público.
Mas era um regime de ampla fraude eleitoral e controle quase absoluto
dos pobres pelos ricos. A rigor, eles não roubavam porque não precisavam
roubar. Toda a estrutura institucional era construída para
privilegiá-los. Ainda hoje, quem tem um certo nível de escolaridade não
presta o serviço militar obrigatório das multidões, mas se forma oficial
da reserva, no CPOR. Não está sujeito às privações que
caracterizam o recruta. Assim se firma uma distinção claríssima entre
pobres e ricos. Ou a existência, recentemente revogada, de celas
separadas nas cadeias para quem tivesse certo nível cultural (leia-se:
social). A cultura é, detestavelmente, pretexto para a segregação
social. E também é duvidoso que os políticos antigos não fossem
desonestos. Pode ser que isso apenas não fosse noticiado. Afinal, em seu
tempo reinavam os grileiros.
E mesmo que até poucas décadas atrás efetivamente se valorizasse o
“fio de bigode”, que realmente as pessoas honrassem mais seus
compromissos, que de fato se empenhassem mais em preservar os laços,
essas condutas vinham junto com uma visão extremamente hierarquizada da
sociedade. Mais que direitos, o que havia era privilégios. Por isso
mesmo, era uma ética mais da obediência que da liberdade. Uma das
maiores dificuldades que temos, em nossos dias, é a de construir uma
ética da liberdade – a única ética, hoje, que merece esse nome. Por um
lado, se não formos livres nossas decisões não serão éticas, porque
estas presumem a liberdade de escolher. Apenas obedeceremos a ordens,
isto é, a mandos, a leis.
Mas, por outro lado, depois de milênios de ordem social
verticalizada, experimentar a liberdade proporciona tal embriaguez, tal
alegria, tal prazer que fica difícil aceitar limitações. Isto é, durante
milhares de anos vivemos liberdade e obediência como opostos completos.
Uns eram livres para tudo, outros para nada, e entre uns e outros havia
os que tinham certas liberdades e certas restrições. Hoje estamos
aprendendo uma relação intrínseca entre liberdade e restrição (que
chamamos de “responsabilidade”) que ainda é nova. Conceitualmente, essa
ligação existe já há alguns séculos, mas muita gente ainda não saiu do
velho paradigma para entrar no novo. Saber que a liberdade não é
simplesmente um fim completo de limitações, mas um sistema em que as
limitações decorrem da própria liberdade, é novo – e difícil.
Para voltar ao balde de gelo:
aqui estamos longe da ética. Fazer o bem por razões que não são as do
próprio bem é socialmente útil, mas não implica que as pessoas que assim
agem, os indivíduos concernidos, sejam eticamente decentes. Na verdade,
quase tudo em nossa sociedade funciona dessa maneira, dispensando as
pessoas de serem éticas. Uma doutrina antiga, enunciada por exemplo pela
fé cristã, rezava que para o Estado ser bom o rei devia ser bom, que
para a sociedade funcionar direito os indivíduos deviam ser direitos. A
modernidade capitalista varreu essa teoria. O lucro serve de grande
motor para a vida social, e ele não é ético – na melhor das hipóteses, é
moralmente neutro. Depende de ser canalizado adequadamente pelas
instituições para funcionar, seja (mal) como o que impele ao furto, ao
assalto, ao latrocínio, seja (bem) como o que conduz a uma economia
próspera.
A grande novidade dos tempos modernos é esta: como melhorar a
sociedade, fazendo-a desfrutar de inúmeros benefícios públicos, sem
precisar que os indivíduos sejam virtuosos – ao contrário, apostando
justamente nos seus vícios privados. No caso, o voyeurismo de ver
famosos sofrendo, por alguns segundos, um choque térmico que os expõe a
nossos olhos gulosos. Seria sem dúvida pior se fosse um espetáculo de
gladiadores.
Mas ficam assim faltando, em nossa formação, experiências mais éticas. No seu livro A Casa da Rússia, John le Carré
diz, a certa altura: “Hoje, para alguém ser ético, às vezes precisa ser
herói”. Não é sempre que a exigência é tão elevada. Às vezes, basta ser
decente. Mas a ética é o que impõe devolver o dinheiro achado que não é
nosso, defender o injustiçado, acudir o acidentado e, por que não,
votar de maneira consciente. Em todos esses casos pode haver um
sacrifício, um prejuízo, e ele é da substância do heroísmo. No limite,
precisaríamos aprender que há casos – felizmente raros, atualmente – em
que a própria vida deve ser posta em risco em nome de um ideal maior.
Deveríamos, penso eu, ler mais histórias de heróis. Mas eles próprios
foram degradados. O que as crianças veem como “super-heróis” na
televisão são personagens cuja principal qualidade é a força bruta, que
sobrevivem ilesos, incólumes, a qualquer prova física. Eles não têm
elaboração para além da força corporal. Não têm vida cultural, nem
espiritual. Nem são personagens que sacrificam a vida pelo bem comum.
Sua vida nunca está realmente em risco. Ora, quando as narrativas de
formação ignoram uma experiência humana fundamental, fica difícil formar
psiques capazes de algum tipo de renúncia em nome de valores. Daí que,
para alguém se separar de seu dinheiro, a saída – expressa no desafio do
balde – seja o circo. E se pensamos na sociedade que mais valorizou o
circo, a romana, a conclusão não é muito boa. O circo era o lugar da
gladiatura, da crueldade, do despedaçamento de homens e mulheres por
animais. Era o espaço em que, éticos, só os sacrificados. E não é no
lugar deles que os doadores do balde de gelo se colocam – e sim no lugar
da plateia que se diverte com o espetáculo. Apartar-se do dinheiro, o
que, vamos e venhamos, é muito menos do que apartar-se da vida, se torna
apenas o bilhete de ingresso no grande parque de diversões que se tem
tornado nossa vida social, virtualizada, a distância. Algo está faltando
aí.
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* Professor de Ética e Filosofia na USP
ee autor de A Universidade e a Vida Atual (Companhia das Letras) em artigo publicado pelo O Estado de S. Paulo, 24-08-2014.
Fonte: IHU online, 26/08/2014
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