Leneide Duarte-Plon*
Sempre que as tensões da guerra e dos massacres esquentam o Oriente
Médio, a França vê subir a temperatura dos debates entre intelectuais
judeus franceses, que travam uma verdadeira batalha de ideias por meio
dos grandes jornais, de esquerda e de direita.
Observadores do debate político constatam uma progressiva direitização
da opinião judaica tanto em Israel quanto na França e no mundo todo. Mas
os intelectuais judeus de esquerda não deixam de tomar a pena para
defender o direito internacional e acusar seus pares de má-fé e
imobilismo em meio a um silêncio ensurdecedor, ou mesmo de compactuar
com “crimes de guerra”.
Um grupo de neoconservadores que vieram da esquerda – entre eles os
filósofos Alain Finkielkraut, Bernard-Henri Lévy e André Gluksman –
costuma se agitar e monopolizar a mídia francesa: são vistos em todos os
debates na TV, nas emissoras de rádio e assinam artigos (“tribunes”)
nos grandes jornais para defender de forma acrítica as posições
oficiais do governo de Israel, por mais indefensáveis que sejam diante
do direito internacional.
Violência constante
Entre os intelectuais judeus que se mantêm críticos do alinhamento
automático com Israel, alguns como Stéphane Hessel (que morreu no ano
passado), Edgar Morin, Eric Hazan, Rony Brauman e Etienne Balibar, entre
muitos outros, costumam tomar a palavra em artigos e entrevistas para
defender pontos de vista que levam em conta, acima de tudo, as
resoluções da ONU e o direito internacional, tripudiado ano a ano pelas
implantações de colonos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, tornando
o projeto de um Estado Palestino – previsto na Resolução 181 – uma
miragem cada vez mais distante.
Essa nova agressão de Israel ao gueto palestino de Gaza, que a imprensa
internacional teima em chamar de guerra, trouxe novos confrontos,
típicos do panorama intelectual francês, que teve no “affaire Dreyfus” um marco.
Um dos textos mais brilhantes foi produzido pelo filósofo Daniel
Salvatore Schiffer, que escreveu uma “Carta aberta de um intelectual
judeu a seus pares”. Os pares a quem ele se dirigia foram nomeados no
título do texto “Lettre ouverte d'un intellectuel juif à ses pairs –
Alain Finkielkraut, André Glucksmann, Bernard-Henri Lévy, Elie Wiesel”.
Ele explicou que queria denunciar o “silêncio ensurdecedor” de seus
pares, quando Israel estava cometendo “em total impunidade, um massacre
na Faixa de Gaza, contra milhares de civis inocentes”.
Em seu texto, Schiffer se espanta que os intelectuais a quem se dirige,
implacáveis quando se escandalizam diante de injustiças no mundo, como o
cerco de Sarajevo pelos sérvios, não denunciem os bombardeios
israelenses sobre civis palestinos. Salvatore Schiffer chega a comparar a
estreita e superpopulosa Faixa de Gaza “ao gueto de Varsóvia, de
sinistra memória”.
O negacionismo tão condenado pelos judeus franceses (quando se trata de
negar o holocausto – “la Shoah” no francês atual, a partir do hebraico
–, os fornos crematórios e as câmaras de gás nazistas) se repete hoje em
relação aos palestinos. Ele aponta como má-fé dos intelectuais judeus a
quem se dirige o fato de negarem, como Israel, o direito dos palestinos
a um Estado e à existência como povo livre. E isso há mais de 65 anos.
Todas as graves questões relativas à moral e ao direito internacional
levantadas por Schiffer interpelando diretamente seus pares não ficaram
sem resposta. Entre os nomeados, o mais engajado na linha pró-Israel, o
filósofo Alain Fienkelkraut, respondeu no jornal Le Figaro, em entrevista alentada, sem citar o nome do filósofo que o provocara.
A réplica mereceu de Daniel Salvatore Schiffer uma tréplica. No seu
novo texto, Schiffer chama a entrevista de “miserável manipulação
jornalística misturada a uma incrível covardia, tanto da parte do jornal
Le Figaro quando de Finkelkraut”.
Tratado de “traidor”, Schiffer viu que sua compaixão para com os
palestinos parece insuportável a quem na sua ira passional chega a
compará-lo ao “diabo”.
“Tão grotesca quanto iníqua, essa reflexão de Finkielkraut, que nos
últimos tempos flerta perigosamente com as teses nauseabundas do Front
National [partido político de extrema-direita]! Tenho
dificuldade em imaginar como uma instituição tão prestigiosa como a
Academia Francesa pôde acolher essa caricatura de filósofo”, escreveu
Schiffer.
“Nada pode justificar essa carnificina. Da parte de Israel que deveria
ser um exemplo para a humanidade, ela é inadmissível no plano humano.
Esse crime, repreensível no nível moral, se assemelha, mesmo que lhe
seja difícil admitir, a um ‘crime de guerra ou ‘crime contra a
humanidade’. Israel não é digno nessa circunstância mortífera, de sua
História”.
“Será que os judeus, por meio de não sei que privilégio, teriam o
monopólio dos guetos e, da mesma forma, teriam a exclusividade do
genocídio sobre a Terra? Teria sido ele ‘eleito’ para o pior?”, pergunta
Schiffer.
Os dois primorosos textos de Schiffer merecem uma leitura atenta. O
filósofo analisa as violências religiosas que são frequentemente
perpetradas em nome de Yahvé ou de Alá para concluir que prefere crer
que Deus não existe. E enquanto intelectual judeu laico e agnóstico
conclui, como Shelley, pela necessidade do ateísmo.
Política digna
Na edição do Le Monde datada de terça-feira , 5 de agosto, foi
a vez do filósofo e sociólogo Edgar Morin e do ex-presidente de
Médecins Sans Frontières, Rony Brauman (ambos judeus), assinarem a oito
mãos um artigo com o filósofo Régis Debray e com Christiane Hessel,
viúva do grande Stéphane Hessel, este também um intelectual de origem
judaica que não se cansou de denunciar a ocupação e o massacre dos
palestinos. O texto era dirigido ao presidente da República francesa e o
título era “François Hollande, o senhor é responsável por uma certa
ideia da França que está em jogo em Gaza”.
Em um magnífico texto também dirigido a François Hollande, o maior jornalista francês, Edwy Plenel, criador do jornal online Médiapart,
citou Edgar Morin como um dos intelectuais judeus que foram vítimas de
“cabalas caluniosas por sua justa crítica à cegueira israelense”.
Escreveu Plenel: “Morin, como Stéphane Hessel, encarna essa esquerda que
não cede em seus princípios e seus valores, não hesitando em pensar
contra ela mesma e contra o seus, evitando a armadilha de se alinhar a
uma origem ou pertencimento”.
O artigo dirigido a Hollande e assinado por Morin, Brauman, Debray e
Christiane Hessel merece ser lido com a máxima atenção. Justo da
primeira à última linha, nele os signatários interpelam o presidente e
seu alinhamento imediato à uma invasão de Gaza por Israel, que chocou a
todos os que, como o ex-chanceler e ex-primeiro-ministro Dominique de
Villepin, agiram por uma diplomacia justa e independente no “país dos
direitos humanos”.
“A anexação da Criméia russófona desencadeia indignação e sanções. A
anexação da Jerusalém que fala o árabe nos deixaria impávidos? Pode-se
condenar Putin e absolver Netanyahu? Dois pesos e duas medidas?”,
perguntam Morin, Debray, Brauman e Hessel.
O texto assinado pelos quatro intelectuais continua dizendo que
“pode-se lamentar a morte de militares durante uma operação guerreira,
mas quando as vítimas são mulheres e crianças sem defesa que não têm
mais água para beber, que não são ocupantes mas vítimas da ocupação, que
não são invasores mas foram invadidos, não é o caso de se implorar mas
de se impor o respeito ao direito internacional”.
Um país como a França não está condenado a ter uma diplomacia digna de George W. Bush nos piores tempos.
François Hollande, que se apressou a apresentar solidariedade a Israel
logo depois da invasão de Gaza, deve responder aos intelectuais que o
questionaram com uma política externa digna da França, que sempre se
orgulhou do epíteto de “país dos direitos humanos”. No mínimo, dando
declarações de princípios dignas de uma diplomacia independente.
Talvez seja muito esperar que ele suspenda a cooperação de empresas
francesas com Israel em projetos nos territórios ocupados, como o dos
bondes (tramway) em Jerusalém Leste.
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*Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris
Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/intelectuais_judeus_franceses_e_o_muro_da_incompreensao
Imagem da Internet
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