Christian Ingo Lenz Dunker.*
Pode ser uma inverdade, mas neste terreno a especulação tem força de lei.
Diz-se que a
terra contaminada que ocupava a área na qual foi construído o Novo
Templo de Salomão, mais recente edificação religiosa da Igreja do Bispo
Edir Macedo, foi removida para o aterro no qual se estabeleceu a Escola
de Artes, Ciências e Humanidades da USP, a EACH. Desta maneira a assim
chamada USP-Leste anda pelas areias do deserto, qual Moisés em busca da
terra prometida, sem lugar para continuar seu projeto inovador, enquanto
se inaugura, na mesma cidade, o mais imponente santuário da fé.
Seria só
mais um caso desta mistura crônica entre descaso, imprevidência e
precariedade, com o qual temos tratado a educação em geral e as
universidades em particular. Contudo, há algo mais forte e insinuante
nesta metáfora. A terra contaminada, sob a qual se ergue o templo
religioso, lugar, sagrado, santo e purificado, é transportada para dar
fundamento, em sentido objetivo e arquitetural, a um novo campus laico,
profano e comum, que prenunciava uma nova era de expansão do acesso a
este bem simbólico crucial que é a universidade. Menos do que uma
inépcia dos responsáveis pelo sistema de higienização, do que um deslize
do departamento de controle de resíduos, ou do horizonte ecológico da
operação, há neste desterro, um toque de ironia.
O Templo de
Salomão, erigido em 1004 a.c. e destruído em 586 por Nabucodonosor II,
dando origem à diáspora judaica, foi construído para abrigar a arca da
aliança. A construção não podia ser erigida pelo próprio Rei Davi,
mentor da ideia, porque ele havia derramado sangue demais na terra, com
suas campanhas militares. Por isso coube a seu filho, um homem de paz,
construir por meios pacíficos, o lugar que guardaria o símbolo da
aliança entre um povo e seu Senhor. A expressão “símbolo da aliança” já é
em si redundante porque o símbolo é antes de tudo pacto, aliança e
promessa para com o outro (alio).
É por isso
que soa tão ofensiva a imagem da terra impura sendo transportada, quiçá
indevida e ilegalmente, do centro para a periferia, do sagrado para o
profano, do privado para o público. A ideia de assentar uma nova
universidade nos escombros tóxicos de uma obra suntuosa e rica coroa uma
espécie de injustiça salomônica praticada contra aquela que é uma das
instituições residuais mais importantes de nosso espaço público. Algo
nos diz que a religião deveria celebrar a pobreza e o decoro, enquanto
que para a educação superior deveríamos reservar nossos melhores
recursos. Talvez seja por isso que neste caso o universal do Reino de Deus e o universal
da Universidade dos Homens parecem estar em uma relação invertida.
Lembremos da árvore universal do conhecimento, proposta por Descartes.
Ela tinha em seus ramos a moral, a medicina e a mecânica, no tronco a
física e nas raízes a metafísica. O que vemos agora, nesta espécie de
árvore liberal do conhecimento, são os ramos da ciência apoiarem-se
diretamente sob o lixo tóxico, enquanto as raízes metafísicas saem por
aí voando de helicóptero.
O argumento
liberal afirma que tudo o que o Estado faz ele faz mal. A iniciativa
privada faria melhor, mais barato e mais eficiente. Em que pese a
controvérsia definicional, a vasta e complexa forma de vida que chamamos
de neoliberalismo, traduz-se pela aplicação desta ideia às áreas antes
consideradas reservadas (ou sagradas?) pelo liberalismo clássico:
educação, saúde e assistência social.
Foi assim
que pusemos à prova esta espécie de abertura dos portos para a aventura
privatista da educação universitária no Brasil, a partir dos anos 1990. A
ideia de Paulo Renato parecia plausível. Liberaríamos o investimento em
universidades públicas, atraindo verbas de conglomerados educacionais
internacionais e estimulando o investimento de nossas universidades
particulares. Deixaríamos o espírito do ensino apostilado, modulado e
pré-fabricado, expandir-se livremente e assim livremente associar-se com
as demandas do mercado. Cada universidade estará livre também para
escolher seu destino: pesquisa, extensão, educação. Assim aliviaríamos o
Estado de investir tão pesadamente em uma área de alto custo e de
retorno eleitoral incerto ou difuso. Ao mesmo tempo criamos um sistema
inédito e bem aparelhado de controles, de métricas de resultados, de
regras de produtividade, fiscalização e excelência. Bastaria garantir
certos limites, por exemplo, quanto ao número mínimo de doutores e
mestres por universidade, quanto ao processo e seus meios elementares,
aferidos por meio de procedimentos como o Enem e o Enade.
A
multiplicação de alternativas aumentaria liberdade de escolha do
consumidor e as melhores universidades se destacarão pela lei da
concorrência aplicada ao ensino universitário. Lentamente isso formaria
um cenário de competição virtuosa por melhores padrões de ensino e
pesquisa. Saneando a corrupção epidêmica do Conselho Nacional de
Educação, fixando marcos regulatórios e criando normas firmes, que
impediriam exageros e deformações, a universidade brasileira se
capilarizaria ao custo quase zero. Tais ações seriam suficientes para
incluir um número substancial de pessoas, aumentando o acesso
“universal” à educação de qualidade, ademais criando novas “ilhas de
excelência” comparáveis ao que se obtinha por tradição no dispendioso
ensino público.
Um plano
perfeito de justiça salomônica. Como se sabe a astúcia jurídica do filho
de Davi podia reconhecer a importância da renúncia como verdadeiro
traço de amor. Diante das duas mães que lutavam para ter a posse de uma
criança, Salomão decretou que se dividisse a criança ao meio e se desse a
metade para cada uma das pleiteadoras. Diante da iminência da morte do
filho, a mãe verdadeira, renuncia à sua posse entregando-o para a
falsária. Ao perceber este gesto de renúncia Salomão, em sua infinita
sabedoria, faz justiça entregando a criança à sua legítima mãe.
Mas no caso
das universidades paulistas parece que quem ganhou a contenda foi a mãe
falsária. Dividindo a criança ao meio, a expansão massiva das
universidades brasileiras fez-se sem nenhum critério de qualidade. Seu
grande conceito aproveitável veio do mundo das finanças, o Prouni, não
do mundo da academia. As universidades ruins não fecharam, as exigências
quanto ao número de doutores foram retiradas e eles mesmos retirados em
massa (porque mais caros) das universidade privadas. As comparações e
métricas nos permitem ver, agora com mais clareza, a expansão do abismo
que separa a excelência da sub-universidade. Legitima-se a exploração
dos professores horistas, que são mais lucrativos quando não se lhes
permite tempo para a pesquisa ou estudo.
As antigas e
boas universidades “médias” agora não tem mais lugar, nem apoio, nem
incentivo. No mundo de Salomão é tudo ou nada. E tem que ser assim para
convocar a mão invisível que vai regular a barbárie. Por isso quando o
milagre não veio já era tarde demais. O livre empreendorismo em educação
não foi capaz de produzir universidades de qualidade. As excelências
continuaram a ser as de sempre, agora respaldadas por resultados
surpreendentes em rankings mundiais, obtidos por USP e Unicamp. Elas
conseguem competir com universidades de 5.000 ou 10.000 alunos como
Harvard, Yale, ou mesmo a Universidade Católica do Chile que contam com
orçamentos per capta infinitamente mais caros.
Até aqui
deveríamos aprender com fracassos, reconhecendo alguns ganhos, apesar do
erro geral de conceito. O que realmente surpreende é que em vez de
reverter o equívoco, salta aos olhos na recente crise da USP, que se
trata mesmo é de redobrar o princípio da gestão e do “negócio
universitário”. É assim que, surpreendentemente, a USP aparece como uma
espécie de espelho invertido do que se passa no Novo Templo de Salomão.
Como se estivéssemos a ouvir, às vezes de seu próprio reitor e porta
voz:
“Seus
6.000 professores vivem como fariseus, ensinando a falsa lei da
esquerda às crianças, com seus nababos salários de 5.000 reais (em
média). Eles são a prova de que o verdadeiro milagre universitário ainda
não veio: fazer uma universidade de qualidade, sem ter que pagar por
isso.
Seus
funcionários deleitam-se na luxúria do ócio sindical. Quando se trata
de fazer justiça com eles não é Salomão, mas Talião invertido que é
convocado: acusação com provas forjadas, denuncia sem piedade, crime e
castigo de forma exemplar, para criar temor. Afinal é a USP, esta casa
da bagunça e lugar dos ricos que deve ser saneada pela força.
Seus
40.000 alunos filistinos deviam envergonhar-se por onerar o erário
público quando procedem de altas castas dirigentes. Estes também bestas
feras que praticam o trote, que fumam a erva do diabo, que incitam a
violência.
Mesmo
tendo dado à luz aos dois partidos, hoje majoritários no país, há anos
este espaço, agora impuro, não recebe a visita de Dilma ou Alckmin. São
bárbaros com quem não se fala, não se negocia, não se partilha problemas
ou soluções. E quando surgem greves ou ocupações isso só comprova que
são ímpios querendo privilégios como se fossem o verdadeiro povo
escolhido.
Seu
espaço aberto, público e gratuito é uma torre de marfim. Seus
experimentos com segurança, autonomia e gestão interna são óbvios
privilégios que devem ser cassados, para que não exista ninguém acima ou
abaixo da lei.”
Da lei universal da falsa universalidade.
Há algo
muito propositalmente equivocado em retratar a USP como um elefante
branco, suntuoso e “fora do mundo”. Esta imagem deixa no ar que este tal
templo deveria ser partido ao meio – parte produtiva e parte
improdutiva – e vendido para a iniciativa privada, incluindo seus
marajás e o marfim de suas torres. Se esta ideia surge fácil, na imagem
invertida e na retórica da purificação da USP, é porque ela é uma
espécie de ícone do Estado que deu certo e ao mesmo tempo de um modelo
de gestão que deu errado. Um símbolo do que a iniciativa privada, mesmo
lhe sendo dadas as melhores condições, não conseguiu fazer.
Ou seja, não
apenas desconhecemos como choque de gestão, associado com falta de
transparência e anacronismo institucional, causou o problema, como
queremos solucioná-lo com medidas ainda menos transparentes (cadê as
contas da USP?), mais anacrônicas (cortar o ponto de grevistas com quem
não se quis conversar?) e mais gerenciais (cortar funcionários
terceirizados de limpeza?). Na hora de indicar o reitor agimos segundo a
velha teologia política dos amigos de Salomão, mas na hora em que temos
que colher os frutos de sua gestão desastrosa 0% de reajuste salarial
será um castigo bem aplicado aos pródigos esbanjadores.
A crise na
USP parece cada vez mais uma crise fabricada. Uma espécie de exagero do
problema para vender uma solução, neste caso requentar uma solução.
Menos do que um assunto local no qual se partilham recursos, mais ou
menos escassos, o que está em jogo é o próprio tratamento da
desigualdade e dos meios mais seguros para sua transformação em
equidade. Mas em vez de reconhecer o caráter púbico deste bem simbólico e
de concorrer para melhorar seus fins, o que encontramos nesta imagem
invertida é uma versão desta maneira bem brasileira de inverter
privilégios estimulando o ressentimento social, derrogar alianças
próprias ao pacto público que é a educação e perseguir falsas aparências
em inimigos internos feitos às pressas.
Enquanto a
USP afunda nas areias do deserto formado pelo resíduo de outras terras
sem lei, o Templo de Salomão continua a resplandecer em todo o seu poder
e glória.
***
Em outubro a Boitempo lança Mal-estar, sofrimento e sintoma,
de Christian Dunker. Novo título da coleção Estado de Sítio, coordenada
por Paulo Arantes, o livro parte de uma psicanálise da vida
em condomínios para desenvolver uma aprofundada
reflexão interdisciplinar sobre a privatização do espaço público e
inserção da psicanálise no Brasil. Confira a aula dele, no Café
filosófico do CPFL Cultura, sobre as transformações no sofrimento
psíquico:
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* Psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da USP,
Analista Membro do Fórum Lacaniano, fundador do Laboratório de Teoria
Social, Filosofia e Psicanálise da USP, autor de "Estrutura e
Constituição da Clínica Psicanalítica" (AnnaBlume, 2011) prêmio Jabuti
de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012. Desde 2008
coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto
de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em
psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2014/08/13/a-usp-nas-areias-do-templo-de-salomao/
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