Michel Aires de Souza*
Todos
que leram o livro Vidas Secas de Graciliano Ramos devem ter percebido a
grande dificuldade do personagem principal em pensar a si mesmo como
sujeito. O livro conta a história de Fabiano e de sua família em uma
Odisseia pelo sertão do nordeste, no período da seca. Ele e sua esposa,
Sinhá Vitória; seus dois filhos e a cadela Baleia viajavam embaixo de
um sol escaldante, sempre buscando sobreviverem. A vida de Fabiano é de
um retirante, onde não há relações duradouras, não há uma narrativa
continua em sua existência, não há linearidade. Sua vida era tão árida
como o meio ambiente a sua volta. A seca não era apenas a condição de
seu meio, mas era de seu mundo interior, de sua vida. A carência e
escassez do sertão estavam profundamente enraizadas em sua alma. Ele era
como um daqueles mandacarus resistente à seca. Mesmo naquele mundo
árido, a opressão e as relações de poder e de classe estavam presentes.
Fabiano sempre era explorado e enganado, e sentia dificuldade em pensar
essa exploração. Era desprovido de raciocínio e de reflexão. Ele era
desumanizado pela seca, pela miséria e pelas relações de poder dos
proprietários da região. Como consequência disso, a linguagem de Fabiano
era pobre, sua visão de mundo era limitada e fragmentada. Naquele
ambiente ele apenas sentia-se bem diante dos animais e confundia-se com
eles. Em uma passagem do livro isso é mostrado de forma contundente.
“Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros
quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado
confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem
cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não
se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto
e feio. Às vezes, utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua
com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias. Na verdade
falava pouco. Admira as palavras compridas e difíceis da gente da
cidade, tentava reproduzir algumas em vão, mas sabia que elas eram
inúteis e talvez perigosas.” (Vidas Secas – Graciliano Ramos)
Fabiano não é apenas um personagem de Vidas Secas, ele também
personifica a imagem de muitos indivíduos nos grandes centros urbanos.
Sua pobreza vocabular, a grande dificuldade em raciocinar, a
incapacidade de compreender as forças que o dominam e determinam sua
existência é característico de muitos brasileiros anônimos. Fabiano era
desprovido de “linguagem”, por isso não conseguia pensar com autonomia,
não conseguia perceber as forças que o subjulgavam, que o condenavam a
uma vida de miséria. Em uma passagem, ele percebe que o patrão lhe
enganara em seu salário. Sente-se injustiçado e impotente, pois não sabe
fazer contas. Nesse sentido relaciona a linguagem a poderes mágicos,
que só os homens “sabidos” podem ter. A pobreza vocabular de Fabiano
impedia-o de compreender sua exploração e miséria. Por esta razão, a
linguagem é essencial na vida dos seres humanos. O homem sem linguagem
torna-se um primitivo, torna-se um animal. Fabiano era um primitivo,
era um animal. Ser desprovido dos benefícios da linguagem é parte da
miséria humana e ajuda a perpetuá-la. A miséria nasce da “ignorância”. O
olho vê apenas o que está em seu campo visual, mas é a linguagem que
abre as portas da percepção. A linguagem revela, mostra o efêmero, o
indizível, o oculto, o indelével. Ela capta o universal no particular,
nesse sentido é libertadora. O grande filósofo Wittgenstein já dizia que
“os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Fabiano
não tinha um mundo, vivia de forma inconsciente, não era capaz de
refletir sobre suas circunstâncias. Vivia como um bicho. Sem linguagem
não há reflexão. Só podemos representar e compreender o mundo através
da linguagem. Não há pensamento sem linguagem. Aquilo que está fora de
minha linguagem, está fora de meu mundo. “A linguagem é o espelho do
mundo”. Por está razão, o conhecimento é o único caminho para a
autonomia, a consciência crítica e a emancipação intelectual. Somente a
educação pode por fim a miséria e a exploração.
Fabiano ignorava o que realmente sentia, vivia de forma irrefletida,
seu objetivo era apenas sobreviver ao flagelo da seca. Como ele, muitos
brasileiros vivem de forma irrefletida, percebem o mundo como obstáculo à
plena realização de sua individualidade, como obstáculos à expressão da
sua subjetividade. Ser como Fabiano é ser incapaz de dar sentido e
significado a sua experiência social, é ser incapaz de pensar o mundo de
uma maneira crítica e consciente. Nossa existência e circunstâncias só
podem ser compreendidas se tornamo-nos cônscios de nossa posição social
na grande ordem do todo. Só podemos avaliar nossa experiência e nosso
destino compreendendo as forças históricas e as relações de poder que
nos determinam. Segundo Wright Mills os homens “raramente têm
consciência da complexa ligação entre suas vidas e o curso da história
mundial; por isso os homens comuns não sabem, quase sempre, o que essa
ligação significa para os tipos de ser em que se estão transformando e
para o tipo de evolução histórica de que podem participar. Não dispõem
da qualidade intelectual básica para sentir o jogo que se processa entre
os homens e a sociedade, a biografia e a história, o eu e o mundo. Não
podem enfrentar suas preocupações pessoais de modo a controlar sempre as
transformações estruturais que habitualmente estão atrás deles” (MILLS,
1969, p. 10).
A história de Fabiano mostra-nos que nossa experiência e nosso destino
não é conduzido pelo acaso, que nossos fracassos ou vitórias na vida
dependem de forças que não temos controle. Que a vida particular de cada
indivíduo está inextricavelmente ligado a seu meio e a sua sociedade.
Que nossas ações não são independentes da ordem do todo. Que o nosso
cotidiano e nossa vida são determinados por acontecimentos históricos
diversos, mesmo que sejam distantes no tempo e no espaço. Fabiano vive
de uma geração a outra numa determinada sociedade, em um certo estágio
das forças produtivas, subjugado por um mundo de carência, escassez e
opressão. Fabiano além de lutar com as forças da natureza, buscando
sobreviver à seca, também era subjugado, em um estágio primitivo das
forças produtivas, pelo patrão, pelo dono da venda, pelo soldado
amarelo, pelo fiscal, como partes daquele mundo onde as relações de
exploração capitalista eram ainda coloniais..
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BIBLIOGRAFIA
MILLS, Wright C. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Record, 1938.
WITTGENTEIN, L. Tratado lógico-Filosófico. Lisboa: Fundação Calouste Gulberkian, 1995.
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* Professor. Possuo graduação em Filosofia pela UNESP - Universidade Estadual
Paulista; mestrado em Filosofia pela UFSCAR - Universidade Federal de
São Carlos; e especialização docente em sociologia pela USP -
Universidade de São Paulo. Minhas áreas de interesse são filosofia
contemporânea, sociologia, educação e pós-modernidade.
Fonte: http://filosofonet.wordpress.com/2014/08/13/por-que-devemos-ler-vidas-secas/
lindo texto!
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